sexta-feira, agosto 13, 2004

Luis da vacaria


Não tenho nenhuma imagem na memória, dele pessoa nova. Sê-lo-ia certamente naquele tempo.
Mas a memória é como um rio heraclítico a fluir intemporal. A água que vemos agora passar parece a mesma de há pouco. Mesmo que entretanto tenham decorrido mil anos. Além de que, quando se é crianças, uma pessoa de, digamos, 40 anos, é velha, um 'cota' como se diz hoje. É necessário que o tempo faça desmaiar as frágeis folhas da vida, na luxúria outonal duma dialéctica sazonal, na aparentemente triste continuidade, para um dia percebermos, porque chegámos nós a essa idade, que velhos são os trapos.
E, assim, recordo-o velho, olhinhos vivos e brilhantes, um pouco ossudo e alquebrado, mas de voz espessa e possante a gritar o seu pregão. Se não avisava a chegada com a voz do corpo avisava com a voz da buzina da carroça, o que vai dar no mesmo. Fonc, fonc. Sentado na chiante carroça, puxada por uma mula que já vira melhores dias, debruçado sobre as rédeas, chibata na mão, num troc-troc rítmico, percorria o bairro, perseguido pela miudagem saltitante, ou com uma guarda-de-honra de bicicletas, parando nas ruas e pracetas, onde as mães e as avós acorriam a comprar o leite, os iogurtes, o pão, os ovos, que todos os dias ele religiosamente fornecia. E que, aqui para nós, eram do melhor e que bem que sabiam! Aquele pãozinho fresquinho logo pela manhã, espessamente barrado com boa manteiga, a acompanhar o café com leite, era uma oferenda divina que abria o apetite para o dia todo! Abria o apetite para a Vida!
Chamavamos-lhe sr. Luís da vacaria. 'Luís' de seu nome próprio e 'da vacaria' por ser proprietário de uma dita que existia nas imediações do bairro, próximo da Estrada Militar, actual Estrada da Medrosa.
O velho edifício, atrás do qual se situava a vacaria, ainda se conserva no local, hoje desabitado e de portas e janelas entaipadas a tijolo, sorrindo placidamente dos rumores de assombração fantasmagórica, que faziam passar ao largo a criançada, ali na ampla curva próximo do cruzamento de aceso aos Lombos, fazendo companhia ao pequeno forte de S. Gonçalo que fica também mais ou menos por trás.
Mas é do sr. Luís que quero falar.
Tinha fama de mulherengo. Diziam as más-línguas que na zona não havia empregadita ou criadita que escapasse ao seu faro apurado e ao catrapiscar do seu olho maroto, apesar da aliança doirada que trazia no dedo. Fama... tinha. Agora, se alguma vez teve o proveito...
Também, as mesmas línguas viperinas diziam em surdina, estas coisas não se dizem em voz alta, que ele aguava o leite. É caso para perguntar: se tinham, assim, tanta certeza, porque é que lho continuavam a comprar?
Nisto das más-línguas, nunca se sabe se falam por conhecimento de causa, se por despeito ou dor de cotovelo. Quem sabe, talvez quisessem apenas rivalizar com a mula que puxava a carroça do sr. Luís?
Antes da proibição de venda directa de leite, ele transportava na carroça as vasilhas metálicas, que atestava com o leite que tirava das suas vacas, vasilhas das quais retirava a quantidade que o cliente pretendia. Mas a proibição levou-o a mudar e a ter que se abastecer na UCAL, a passar a vender o leite empacotado. Uma consequência desta mudança foi ter passado também a vender iogurtes, que comprava à mesma empresa.
Como na vacaria também tinha porcos, além das vacas que nomeavam o local, e das galinhas, e sei lá que mais, ele ia frequentemente, com a carroça puxada pela tal mula que já vira melhores dias, pela Estrada Militar afora até ao quartel do RAC, buscar a 'lavagem' para dar de comer aos ditos. Para quem não sabe o que tal coisa é: a 'lavagem' é o resíduo que sobra das cozinhas e refeitórios. Cascas de batata, restos de legumes, restos de fruta, restos de comida, os porcos são omnívoros e não são esquisitos.
Esse percurso ao longo da estrada era uma oportunidade única para a miudagem andar de carroça. Pediam-lhe autorização, que ele sempre dava, e sentavam-se todos na parte de trás com as pernas de fora a baloiçar, numa gritaria eufórica que só adormecia depois do regresso ao bairro, quando era dada a ordem para saltar para o chão. Experiências campesinas numa vila com sonhos urbanos.
Eu só o costumava ver nessas ocasiões em que ele passava a pente fino o bairro, na sua venda ambulante. Não me recordo de alguma vez o ter visto noutro lugar que não fosse o acento da carroça.
Vi-o, sim, há poucos anos, abandonada toda a actividade por força da concorrência inumana dos supermercados, em particular do Pingo Doce nas Galerias Alto da Barra (que nos habituámos a referir como as 'Galdérias', excuso-me de explicar porquê...). Encontrei-o no Centro de Dia dos idosos da Medrosa. Aí passou os seus últimos anos na companhia de amigos, a maioria deles seus antigos clientes, no carinho e ternura lenta das memórias que não esquecem.

Da carroça e da mula, nem vestígios.