sábado, junho 19, 2004

o zé dos óculos

Era assim que nomeavamos a taberna que hoje é o restaurante Mira-Ponte. Era assim apelidada porque o dono se chamava José e usava óculos (esta aparentemente inútil explicação é para os menos familiarizados com a alkunya-onomastikon-genesis in taberna). Na verdade acho que nunca soube o nome dele. Tratava-o, como toda a gente, por 'Sô Zé'. José, acho que era de certeza. Ah, e tinha um táxi por conta dele.
Lembro bem o ambiente. O intenso, quase nauseante, cheiro a vinho, a que o juramento a pés-juntos negava o martelar aquoso, e o odor a madeira velha, húmida, a lembrar vagina de peixeira idosa. Odor que me evocava imagens dum cais lisboeta à beira-rio, de madeira escura e pútrida, noctívago sem noite, à espera do tempo. Os líquidos círculos púrpura sobre o balcão, mesclando-se uns nos outros, fundindo-se em movimentos surdos, como manchas de tinta numa tela de pop-art enófila, eram sinais de uma semiótica condensada na tradição masculina. O vinho corria a rodos, encopado em copos de três, tragado avidamente numa escatologia firmada, encerrada, com estalos da língua, e um 'oh Zé, dá aí mais um qué pró caminho'. O som estrebuchado e o cheiro de um ocasional traque, ressoava por vezes e odorava o éter, provisoriamente, numa alegoria demiúrgica da criação. As minis, os tremoços, as azeitonas e as alcagoitas (amendoins), os queijinhos secos, as carcaças, as sandes de presunto, o habitual impunha-se para não destoar. Como o espaço era exíguo, os homens ficavam de pé, arrimados ao balcão como andorinhas poisadas num fio de telefone. E alguns eram-no. Andorinhas de vôo planado em busca do alento para a migração do dia seguinte que sempre se seguia, de volta ao mesmo poiso. Estranhas andorinhas, de migração tão curta.
Lembro também o edifício. A parte que hoje é curva e acompanha o passeio, na época era aberta e ao ar livre, com um pequeno muro em pedra e era calcetada, e aí existiam duas ou três mesas metálicas verdes com cadeiras também metálicas. Claro que em cima do empedrado aquilo baloiçava por todo o lado. No Verão à tardinha, era um óptimo sítio para estar, até porque não existia o movimento automóvel que existe hoje. Era sossegado. A entrada propriamente dita era feita por duas portas situadas na parede vertical de que ainda existe a empena, visível no edifício e nos vestígios residuais duma espessa coluna no interior. O espaço era estreito, a toda a largura do edifício actual, mas com paredes interiores que depois foram demolidas e lhe deram a amplitude actual. O balcão tinha mais ou menos ao meio uma portinhola e por aí se seguia, por um comprido corredor, para as salas interiores e para a cozinha. Era nessas salas que eram servidas as refeições. Tanto quanto recordo havia uma sala do lado esquerdo, seguida da cozinha, e uma sala mais comprida do lado direito, equivalente ao comprimento das anteriores. Esta última tinha mesas de madeira forradas a plástico florido e em torno, encostadas às paredes, algumas pipas de vinho. O sentar ali e respirar o delicioso aroma que vinha da cozinha era uma tentação para o espírito e para o corpo. O apetite crescia e preenchia todos os cantos do ser. A tentação era forte e tornava-se incontornável. Tinha que ser satisfeita.
A cozinheira era a mulher do Zé, e que cozinheira! Íamos lá muitas vezes, ao domingo, comer um belo dum frango assado acompanhado com batatas fritas e salada. Não havia em Oeiras e arredores nada que se lhe comparasse. Desconheço a origem dos frangos. Não sei se eram do campo, de aviário, do supermercado, da vizinha, da Lua, ou doutro lugar qualquer. Sei que eram bons. Excelentemente temperados e assados. No carvão. Tinham aquele sabor carbónico que só a brasa e o fumo conseguem transmitir aos alimentos. Eram uns belos repastos, sempre ansiosamente aguardados.
Há ainda daquele tempo um curioso pormenor que recordo pela invulgaridade que representava para mim, pois nunca tinha visto nada assim. Quando se entrava, na parede do lado esquerdo existia uma jukebox pendurada. Aparentemente nada de estranho. Não há nada de errado em existir uma máquina de discos numa taberna. O que me fascinava era o modelo. Não era uma das vulgares máquinas que apoiam no chão, mas uma máquina vertical, pendurada na parede. Eu interrogava-me se aquilo estaria bem fixo e não cairia. Que eu saiba, nunca caiu. Tanto quanto recordo, ouvir um disco custava cerca de 2$50. Dois escudos e cinquenta centavos. Eram as chamadas moedas de cinco coroas. Para a época não era uma quantia desprezável, pelo que raramente a máquina funcionava. Mesmo assim, de vez em quando alguém mais endinheirado ou perdulário, ou alguém já ébrio e que, por isso, já perdera o sentido ao dinheiro, punha uma moeda na máquina e ouvia-se soltar-se do interior desta, após um complicado e fascinante processo mecânico de trelac-prelac-troc, a voz do Gianni Morandi, da Marisol, do Gabriel Cardoso, do Tony de Matos, do António Calvário, do Tom Jones, do Elvis Presley, do que a censura, na sua sapiência inquestionável (do ponto de vista deles), complacentemente autorizava que o povo ouvisse.
Anos mais tarde, já snack-bar-restaurante, foi cenário de encontro de estudantes cheios de sonhos de liberdade e justiça social e palco de confluências amorosas e cumplicidades as mais variadas. Mas isto são outras estórias.

Enfim, às vezes tenho saudade do zé dos óculos.

quarta-feira, junho 09, 2004

praia

Antes de começarmos a frequentar a 'nossa' Torre e de descobrirmos aquela que viria a tornar-se a nossa praia de eleição, a praia que frequentávamos era o motel, ali para os lados do Areeiro.
O apelidado forte do Areeiro, ao qual chamo forte-marinheiro por estar sempre guardado por marinheiros da Armada. Gente de potente caixa de ar, a julgar pelos assobios que eu ouvia vindos lá do alto das muralhas e que presumia dirigidos às moças de biquini na praia. A menos que tivessem outro objectivo, cujo sentido me escapava. Talvez fossem um código secreto entre sentinelas, por exemplo a avisar da aproximação dum almirante. Mas se era isso, então o forte era visitado por centenas de almirantes todos os dias...
Na época ainda existia o Motel de Oeiras, o qual hoje é o Inatel. Era e é uma praia pequena mas acolhedora, com uma esplêndida esplanada onde se disfrutava uma magnífica vista sobre o escorreito Tejo. Digo 'disfrutava' porque hoje está emparedada por uma cortina envidrada sempre baça que me faz sentir glaucomático. Perdeu-se a visão límpida e clara que se tinha naquele tempo, sem qualquer nebulosa de permeio. A praia era algo rochosa mas com algumas línguas de areia suficientes para penetrar o mar e dar uns valentes semicúpios, ou para os mais afoitos se lançarem em fortes braçadas a nadar por ali fora como se fizessem tenções de chegar à Trafaria, ali quase em frente, os convencidos!
Recordo que eu ia poucas vezes à praia. A mãe ia com a avó, a Tensinha e o Julinho, mas muitas vezes eu preferia ficar em casa. Era a minha forma de estar só. Só, comigo e com os meus medos de 'estranho numa terra estranha'. Devo referir que nesta época eu ainda não tinha amigos em Oeiras. Estudava no Colégio Portugal, na Parede, pelo que mesmo os colegas eram gente de todo o lado, e nenhum era de Oeiras.
Enquanto elas iam para o Motel eu ficava em casa a brincar sozinho perdido nas minhas aventuras espaciais em galáxias distantes. Ainda hei-de explicar como uma vulgar cadeira se transforma num ápice num acento duma nave espacial ou como uma mesa e um cobertor se metamorfoseiam numa gruta repleta de pinturas rupestres e vestígios pré-históricos. Até fósseis de Triceratóps se encontram por lá!
Não ia, talvez porque não gostava da praia. Não era a minha praia. Era uma praia simpática. Eu é que não conhecia ninguém.
Aquela praia não tinha nada a ver com o que estava habituado: São Torpes; São Torpes antes do Complexo anti-biótico; São Torpes quilométrica a perder de vista; São Torpes dos amigos franceses veraneantes; São Torpes das brincadeiras nos pinhais; São Torpes de espreitar as mulheres a mijarem no pinhal; São Torpes dos aviões na placa da pista de aviação; São Torpes das moreias nos buracos das rochas; São Torpes do caminhar 100 metros, à proporção da idade, até perder-o-pé; São Torpes dos 10 meses de sonho à espera das férias e da maresia; São Torpes do canivete e das lapas cruas e saborosas; São Torpes do japonês comedor de peixe cru à porta da tenda; São Torpes do cacau com chá porque não havia leite; São Torpes do polvo frito contorcionista; São Torpes das moreias-cobra encanadas a secar ao sol; São Torpes do fado do embuçado em noite de sarau, 'fado numa noite de verão'; São Torpes de tendas, barracas e roulotes; São Torpes dos banhos com baldes de água fria tirados do poço; São Torpes de areia rumo ao infinito; São Torpes, San Tropez à portuguesa...
O Motel intimidava-me.
Ali não me sentia menino, miúdo ou rapaz, sentia moço. Ivitava falari pra ninguêm perceberi o mê sutaqui alantejanu. Fazia-me sentir só, demasiado só. E solidão por solidão, preferia buscar voluntariamente a minha própria. Mas a minha solidão não era vazia. Era preenchida de aventuras fantásticas em lugares onde ninguém podia andar. Lugares recônditos que apenas eu conhecia pois era minha a chave secreta que abria os portões por onde se penetrava nesses lugares.
Quando, após as habituais recomendações, a porta da escada se fechava era como se uma imensa e quente bolha me envolvesse. Uma bolha translúcida e maleável que me rodeava e isolava do real. Uma bolha caleidoscópica no interior da qual se dava a transmutação do espaço-tempo que me transformava no objecto do meu desejo: um astronauta a navegar solitário na nebulosa de Oríon, em busca do planeta perdido; um aventureiro de catana em punho a cercear lianas numa selva impenetrável, rodeado de terríveis feras; um marinheiro a desbravar um cabo tormentoso, num mar repleto de navios corsários; um espeleológo preso no interior de uma traiçoeira caverna labiríntica, em busca da almejada saída para a salvação; um cientista debruçado horas a fio sobre o microscópio, à procura do segredo do universo; enfim, uma fornalha de imaginação, um vulcão a expelir e a derramar sonhos.
O barulho da chave na fechadura era como o fino toque dum alfinete na superfície dum balão. A bolha explodia, o mundo esfumava-se, a aventura terminava.
— Então zézinho, o que é que fizeste?
— Ah, nada. — um homem com H não se gaba das suas vitórias nem do número de piratas que trespassou com a espada.

quinta-feira, junho 03, 2004

patamar-paisagem

Como eu gostava daquele terraço!
O prédio não tinha telhado. Hoje tem, telharam um telhado, estragaram tudo. Coisa típica da portugalidade bacoca, teimando em substituir o útil pelo inútil. Terminava então num amplo terraço com 3 lados, o quarto lado encostava à empena do prédio seguinte. No seu centro tinha as arrecadações, uma espécie de galinheiros em rede de capoeira, óptimos para a intempérie estragar o que lá se guardava (assim fiquei sem bicicleta.) Dele tinha uma vista soberba, direi mesmo esmagadora. E essa vista fascinava-me.
A frente do prédio estava e está voltada para a estação da CP de Oeiras, sem qualquer obstáculo pelo meio, pelo que lá de cima tinha uma perspectiva magnífica na direcção da alta de Oeiras. Via, por ali fora, a Quinta de Baixo, onde se destacava o imenso Palácio dos Marqueses; a vila, onde alteavam as torres sineiras da Matriz; o Augusto de Castro, com a sua regularidade pós-moderna; a Figueirinha, preâmbulo anunciador de dormitório; o cemitério, com as pontas aguçadas dos ciprestes, fálicos veículos de migração das almas em busca do Altíssimo; e por ali afora, literalmente 'até onde a vista alcança'. Dessa paisagem sobrou-me apenas uma paupérrima e cinzenta fotografia de má qualidade tirada com a minha velha Fujica.
Do lado esquerdo via a Fundição, domínio laboral, permanente cheiro a fuligem, fogo metálico, ferro líquido e escórias, onde alguns anos mais tarde ganharia a minha experiência operária. E por sobre a Fundição era possível divisar ao longe alguns prédios dum Carcavelos e duma Parede que cresciam como campo de cogumelos, míscaros de tijolo, cimento e vidro gerados para hábitos nocturnos e ausências diurnas, numa floresta desencantada caracterizada pela ausência de fadas ou capuchinhos vermelhos e pela abundância de lobos maus e animais do mesmo gabarito.
Para o lado direito via os 'montes hermínios' e o orgulhoso Liceu de Oeiras, via a faiscante estrada Marginal, alcatrão preto a transbordar aventuras sexuais em hotéis de Cascais, em 'bombas' dos anos sessenta conduzidas por dê-erres lisboetas acompanhados por secretárias morenas com bocas carnudas a cheirar a sémen, via o forte marinheiro do Areeiro e o imenso rio das tágides, com o imponente farol do Bugio no meio, guardião secular de memórias esquecidas.
Era uma vista espectacular! Sobretudo para uns olhitos habituados à planura seca e monocórdica dum Alentejo feito de substâncias imobilizadas no tempo. Aquele terraço era uma janela aberta para o infinito. Aqueles 6 pisos de altura imaginavam arranha-céus nova-iorquinos transplantados para o centro do mundo.
E os comboios? Comboios que vistos daquele lugar privilegiado pareciam o comboio de brincar que nunca tive. Como eram giros vistos de cima. Sobretudo o pára-em-todas, que ao chegar fazia a agulha para ir para a linha do meio. De onde só sairia para fazer o percurso inverso. Vai-e-vem, vai-e-volta, volta-e-vai. Vida de comboio. Como era cómico ver aquelas pequenas carruagens estremecerem e chiarem na mudança de linha.
E os barcos? Via-os ao longe descerem o rio na direcção da barra. Alguns passavam em sentido inverso. Outros, pequenas chatas, apenas ficavam ali a pairar à cata de pescado. Minúsculas mas persistentes, ali ficavam horas a fio sob o sol escaldante, a transpirarem cheiro a escamas e barbatanas salgadas, mergulhadas na maresia. Cargueiros, paquetes, fragatas, patrulhas, veleiros, traineiras. Devo ter visto de tudo. Talvez tenha visto passar algum navio com soldados para as colónias. Talvez tenha visto passar algum navio com presos para o Tarrafal. Talvez tenha visto passar o navio da esperança que nunca regressou ao lar.

Talvez...