domingo, maio 30, 2004

química

Aquele estojo de Química, magnífico perspectivado pelos meus púberes olhos castanhos, ainda era dos tempos de Alcácer. Salacia, a Urbs Imperatoria, a do sal, de onde eu viera algum tempo antes para ser filho adoptivo da mãe Oeiras.
Não recordo quem mo oferecera. A meu pedido certamente, pois se alguém era 'chato' quando queria algo, esse alguém era eu, e a família lá me aparava os golpes.
Era um estojo razoavelmente equipado, com frasquinhos etiquetados com vários produtos químicos, reagentes, tiras de prova, lamelas de vidro, tubos de ensaio, uma pinça para tubos, um suporte para os tubos e uma mais-que-porreira lamparina.
Uma lamparina de vidro, com uma tampa metálica de rosca com um pavio branco e uma tampa de cápsula, também metálica, para encaixar e tapar o gargalo.
Era na cozinha do n.º 43, onde habitava, que habitualmente eu fazia as experiências que vinham descritas no manual, além daquelas que eu próprio inventava, baseado nas aulas de Química do liceu, na esperança de compreender a natureza da matéria e descobrir a essência do Universo. A propósito, nunca descobri, mas continuo à procura...
Levava para lá o estojo, abria-o e dispunha o material sobre a bancada de pedra, com o rigor e a disciplina possíveis na irrequietude dos meus 12 anos. Era uma emoção fantástica. Sentia-me personagem dentro de uma qualquer página de um romance de Júlio Verne, explorador do desconhecido.
Naquele dia estava sozinho em casa. Creio que a mãe tinha saído para ir ao supermercado ou algo assim.
Tanto quanto lembro não estava ninguém comigo, ou se estava era certamente o escravo, o Julinho, que nos seus curtos 6 anos era o meu fiel discípulo e aprendiz de feiticeiro sempre disposto a cumprir as ordens do irmão-mais-velho-que-tudo-sabe.
Não sei como fiz aquilo. Aconteceu. Fui à casa de banho buscar o frasco do álcool para encher a lamparina que estava quase vazia. Ia fazer uma experiência que exigia aquecimento pelo fogo. E se não exigisse eu aquecia na mesma, só pelo gozo, talvez, de gerar combustão.
Enchi a lamparina, enrosquei-lhe a tampa e não me lembro do que aconteceu a seguir.
Lembro a imensa chama líquida azulada espalhada na bancada e escorrendo por ali abaixo direita ao chão. Lembro a aflição sentida, o pavor perante a situação descontrolada, o medo das consequências, a proibição anunciada, o castigo garantido...
Lembro que agi. Não sei é o que fiz. Sei que, em pouco tempo, a situação estava de novo controlada e o fogo extinto, e sem vestígios acusadores. A experiência programada, em busca do conhecimento, da sabedoria, podia continuar como previsto.
Podia ter acontecido uma tragédia naquele dia. Não aconteceu. E aprendi uma lição:

Como encher uma lamparina com álcool sem pegar fogo ao quarteirão...

sábado, maio 15, 2004

adeus

A única imagem que se mantém viva na minha memória daquele dia é a da partida.
Apanhámos cedo a camioneta para Setúbal, logo de manhã. A mãe, a avó, a Tense, o Júlio e eu. Recordo como se visse um filme aquela imagem, sentado próximo à janela, quando a camioneta deixou o largo frente ao rio e começou a subir a estrada. Recordo a dor e a angústia que senti ao olhar pela janela aquelas casas que, acreditava eu, nunca mais veria:

Os amigos e companheiros de aventuras fabulosas, que nunca mais voltaria a ver e com quem nunca mais brincaria aos cowboys ou jogaria ao berlinde, à carica ou à bola;
Os locais vividos, explorados, conhecidos, desconhecidos e cheios de cumplicidades, que eu abandonava para sempre como um vil traidor;
A 'culpa' que senti por voltar as costas a um lugar amado, que me correspondia com amor porque Deus o tinha criado para mim;
A ainda vívida imagem do pés-descalços-e-sapudos, que já era morto porque se afogara na água que lhe dava a vida, e que vendia camarões e caranguejos no largo que eu nunca mais veria;
O sabor amargo do lodo do rio, que eu perderia para sempre, onde nunca mais enterraria os pés descalços;
As cegonhas em que eu já nem reparava de tantas que eram, e duma das quais até tinha um ninho na chaminé ao pé de casa;
A ponte levadiça que já não levantava, porque os saveiros do sal de grandes mastros tinham partido para águas sem água para morrerem como gigantescos animais descarnados;
As anuais inundações, que justificavam a falta à escola e a pseudo-pescaria na varanda do quarto;
As laranjas aos milhões saindo pela porta do mercado, levadas pela corrente lodosa para paragens longínquas;
Os mosquitos do sapal em frente, que já não picavam porque estavam vacinados com o odor do meu sangue;
Os insultos aos trabalhadores sentados nas galeras do tomate, que respondiam atirando o que tinham à mão;
A venda, escuro e sombrio local, do cú-de-chumbo, que tinha de tudo como na farmácia;
O padre zorro que, diziam as más-línguas, roubava dinheiro da caixa das esmolas para ir beber copos de tinto na tasca do Bexiga;
Enfim, tudo o que eu amava.
Tudo isso se perdia. Tudo isso ficava para trás, como se a vida fosse uma estreita fita de papel esticada, na qual se dá uma tesourada.
A minha vida foi cerceada naquele instante.

Do resto da viagem nada recordo. Presumo apenas:
O fascínio da descoberta da paisagem maravilhosa da linha do Estoril vista do comboio. Mas esse fascínio terá sido esmagado pela angústia da perda. Naquela idade foi mais o que perdi que o que ganhei. Do ganho, só viria a tomar consciência ao longo do tempo, à medida que crescia.
E o que eu ganhei...

Mas isso são outras estórias para ir contando aos poucos.

sexta-feira, maio 14, 2004

porquê?

A P.d.I. não perdoa e as memórias estão cada vez mais longínquas.
Faço um esforço para recordar mas as imagens fundem-se e confundem-se num nevoeiro seco e áspero que as torna difusas e quasi irreais.
E isso dói.

Dói sempre que tento contar a alguém, ou a mim mesmo, como foi e como era.
E assim aqui está este ensaio de registar o que um dia desaparecerá para sempre na voragem de cronos como se nunca tivesse existido.
Talvez nunca tenha mesmo existido...

Nem sempre vivi em Oeiras.
Já lá vão uns bons 35 anos, desde que aqui cheguei carregando na sacola os meus 12 anos vividos na província. E como isto era diferente...!
É isto que quero contar. Sem nenhuma ordem especial.

À medida que me for lembrando, assumindo os enganos causados pela distância temporal e o desaparecimento das referências que mantinham viva a memória, irei colocando aqui as estórias, os locais, as pessoas, os sentimentos, as emoções, as paixões, as razões, a falta delas...

A memória nostálgica é o motor do eterno retorno...