terça-feira, dezembro 07, 2004

Bairro-Liceu


Como já referi noutra prosa, quando vim para Oeiras fomos morar para a casa do 43 da avenida Infante D. Henrique. Aí permanecemos cerca de dois anos. A propósito desta casa, segundo me lembro, ela pertencia a um homem do Partido Socialista cujo nome não recordo agora, e que na altura estava preso. Íamos a Nova Oeiras pagar a renda, a casa do advogado dele, que também estava preso!!! Sim, que a Pide adorava prender pessoas, e quando lhe dava para aí, começava numa ponta e acabava na outra. Ia tudo dentro! Às vezes pergunto a mim mesmo como ainda havia pessoas fora da cadeia em Portugal...
Nesse interim em que ali vivemos, e hei-de escrever também sobre esta casa, estava a ser construído o cognominado 'Bairro Novo', do Fundo de Fomento da Habitação, contíguo ao 'Bairro Velho', da mesma instituição (pseudo habitação social...), na antiga Quinta da Medrosa.

O nome desta antiga quinta servia também para designar ambos os Bairros, como 'O Bairro da Medrosa', aglutinando-os numa unidade habitacional que, quando era usada como resposta ao 'onde moras?', habitualmente provocava a pergunta 'no Novo ou no Velho?' ou ainda, mercê da relação topológica, 'no de Cima ou no de Baixo?'.
Era ainda apelidado de 'Bairro das Caixas', não devido ao aspecto ou à qualidade arquitectónica do mesmo, mas derivado de 'Caixas de Previdência', através das quais, julgo saber, era feita a inscrição para obtenção de casa. É, o Bairro, os Bairros, tinha, tinham, muitos nomes...

Mas para a generalidade dos oeirense e mesmo forasteiros, não pasmem porque tem uma explicação muito chã, a simples menção de Medrosa era mais que suficiente para situar o local.
A explicação para muitos forasteiros conhecerem a Medrosa era o facto de a Praia da Torre ser local de veraneio para muitos. Como não existia qualquer espécie de transporte (eu devia dizer 'já não existia'; ao que parece, em tempos remotos, existiu um transporte em carroça), as pessoas faziam o percurso entre a estação de comboios de Oeiras e a praia a pé. O percurso mais curto era precisamente seguindo pela avenida Infante D. Henrique e atravessando pelo meio do Bairro. Mesmo seguindo pelo percurso mais longo e natural, a Estrada Militar (hoje Estrada da Torre), esta bordeja a Medrosa, a bombordo, separando-a dos Lombos, a estibordo.

Faço aqui um pequeno apontamento intercalar sobre os dois Bairros: Para além da qualidade de construção e acabamentos, superior no mais antigo, o Bairro Velho, este era de renda económica. O Bairro Novo era de renda resolúvel, pelo que ao fim de 25 anos as casas passaram automaticamente a pertencer de pleno direito aos respectivos moradores. No Bairro Velho, creio que ao fim dos 25 anos, os moradores tiveram que comprar as casas para ficarem com elas. Acho que pagaram o diferencial entre o que já tinham pago em rendas e o valor das habitações.
Seja como for, havia muita gente a saber onde era a Medrosa e o respectivo Bairro.

Foi para este Bairro da Medrosa, o Novo, que mudámos então, passado algum tempo.
Isto terá ocorrido em 1972, talvez por altura das férias do Verão, visto que só habitámos o 43 cerca de dois anos, e não creio que tenhamos feito a mudança a meio do ano lectivo. Sei que estávamos à espera que acabassem a construção do Bairro e que a casa que fomos habitar ainda esteve habitada por outra família, que a estreou e lá morou durante cerca de um ano.

Lembro-me de, antes de entrar para o Liceu (1973), algumas vezes ir a pé para o Colégio Portugal, na Parede, pela praia fora, só pelo gozo do passeio.
Saía de casa, na praceta Gonçalves Zarco n.º 5, onde habitávamos o 4.º andar, e que os meus pais ainda habitam, seguia pela Estrada Militar até ao Forte de São Julião da Barra, inflectia à direita na direcção da pequena Praia do Moinho, e seguia pelo 'paredão' da Praia de Carcavelos. Dum lado o mar imenso, do outro a Avenida Marginal e a Quinta dos Ingleses. Apenas no fim da praia surgiam as primeiras construções, no Junqueiro, sobressaindo pela dimensão o Hotel Praia Mar e o Hospital Dr. José Almeida, já à entrada da Parede, na Ponta da Rana.
Este magnífico passeio era uma oportunidade excelente para 'catar' toda a espécie de fósseis, existiam imensos espalhados pelo chão junto ao 'paredão', e era só metê-los no bornal. Na sua maioria eram Turritelas, das quais guardo ainda uma meia dúzia. Na Ponta da Rana, próximo dos viveiros, existia também um grande rochedo cuja superfície era um incrível mar de cristais. Não sei o que era. Mas existiam pedaços a juncar o chão à volta, e também aí recolhi alguns espécimes desses cristais que, apesar do meu interesse pela Geologia, nunca soube o que eram. Mas lá bonitos, eram eles! E como faziam brilhar a minha in-fi-ni-ta colecção de rochas, pedras e calhaus!

Durante esse ano lectivo de 72-73, o meu percurso habitual era pela avenida Infante D. Henrique ou pela Estrada Militar, até à estação de comboios de Oeiras. Exceptuavam-se, como já referi, os eventuais percursos a pé pela praia.
Em 1973 entrei finalmente para o Liceu Nacional de Oeiras, para frequentar o antigo 6º Ano. A minha forte apetência pela área científica levou-me a optar pela alínea de Geologia. Apenas dois anos para acabar o Liceu e depois... quem sabe, talvez desse para a Faculdade. Mas muita água correria ainda por baixo da ponte...
O meu percurso a caminho das aulas, que era antes feito entre casa e o Colégio Portugal, mudou então e passou a ser através do Bairro Novo e do Bairro Velho em direcção ao Liceu.
Seguia pela rua D. Filipa de Lencastre, descia a rua à esquerda, rua Infante Santo, hoje serventia do Casal da Medrosa.
Chegando à avenida D. João I o panorama era muito diferente do de hoje. As vivendas na rua Alexandre Herculano já existiam. Mas pouco mais havia, e o que ali estava desapareceu para sempre.

Olhando para a esquerda, via-se o Bairro Velho, e em frente do outro lado da avenida um terreno baldio a confinar com as traseiras das vivendas da rua Alexandre Herculano. Este espaço está hoje ocupado pela Igreja, pelo snack Sentença, e por um parque de estacionamento.
Olhando para a direita, via-se logo ali ao lado uma taberna, genialmente chamada de "Apolo 70", talvez porque a fauna habitual normalmente saía de lá em condições óptimas para entrar em órbita..., frente à qual estava uma enorme e elegante palmeira, que me impressionava pela altura que atingia. Desafortunadamente não tenho nenhuma fotografia da mesma, mas se não ultrapassava a altura dos prédios do Bairro Velho (4 pisos), muito não faltaria. Também esta seguiu o destino de muitas outras espécies arbóreas, trucidadas impiedosamente pela sanha urbanística.
A seguir a esta taberna existia um imenso bairro de barracas que só acabava no fim da avenida, onde esta entronca com o princípio da rua Infanta D. Isabel. Aquele troço de rua que dá acesso ao Lar dos Filhos dos Oficiais e Sargentos, na época ligava directamente à Avenida Marginal. Não existia a rua da Cidade do Mindelo, recente, paralela à Avenida Marginal, que cortou este acesso. Esta referida zona está hoje ocupada por parte do Casal da Medrosa, pelo Pavilhão Desportivo Escolar e pela Escola Preparatória de São Julião. Em frente às barracas, do outro lado da avenida, existia apenas o Campo da Bola, no espaço hoje ocupado por um condomínio privado (mais um...).
Olhando em frente tinhamos a calçada com que termina a rua Infante Santo, que liga à rua Alexandre Herculano, calçada que ainda existe.
Do lado direito desta era também terreno baldio até ao Campo da Bola. Hoje está ocupado pelo Tribunal.
Ainda do lado direito da calçada e bordejando esta existia uma meia dúzia de figueiras que davam os mais doces e celestiais figos que já alguma vez comi. Por isso tantas vezes ali íamos à 'chinchada'. Era à sombra destas figueiras que existia ali um acampamento permanente de ciganos, com os quais, aliás, nunca tivemos problemas.

Sobre estes ciganos conta-se uma história muito engraçada: Aquando da 'campanha' de erradicação de barracas promovida pelo Isaltino de Morais, que acabou com o bairro de barracas já citado anteriormente, diz-se que o presidente terá dado cerca de 100 contos áqueles ciganos para sairem dali e do Concelho.
Eles sair, até sairam. andaram 200 metros mais para o lado e acamparam do outro lado da Estrada Militar!
Ora o 'outro lado' já é pertença do Concelho de Cascais, logo...
No dia seguinte andava o cigano pelo Bairro a conduzir o seu novo triciclo motorizado azul, certamente comprado com a massa recebida do Isaltino, com as ciganas sentadas atrás, e com um sorriso malicioso no rosto, talvez a recordar a cara do Isaltino quando lhe passou as notas para a mão, sim que os ciganos não aceitam cheques.
Se a história é verdadeira ou falsa, não posso confirmar. Apenas confirmo a 'migração' para a 'outra banda' da Estrada Militar, porque vi o acampamento nesse local, onde permaneceu durante largo período, e a cena do triciclo azul, porque a testemunhei.

Enfim, após subir a calçada, virava à direita, já na rua Alexandre Herculano, e pouco depois virava à esquerda, para subir a rua do Liceu, et voilá! Aulas e depois o regresso a casa pelo percurso inverso, com mais uns figuitos pelo caminho, e muito regabofe, que sempre se encontravam amigos pelo caminho e isto de ser adolescente tem muito divertimento à mistura!

Como o Bairro da Medrosa era diferente naquele tempo!

sábado, dezembro 04, 2004

forja de caracteres


Quando em 1970-72 eu miúdo acordava estremunhado com o uivo sinistro da sirene da Fundição, ali mesmo ao lado da minha casa, ali mesmo ao pé da minha cabeça, ali mesmo aninhado na minha almofada, a gritar doidamente que era chegada a hora...
quando espreitava à janela no meu ensonado voyeurismo matinal para, por entre a veladura das ramelas, ver a chuva cair lá fora, a anunciar um frio, arrepiante, deprimente e molhado dia de Inverno, ou para ver a límpida luz do sol prenunciadora dum belo dia de praia, prenhe de alegrias, risos e prazeres...
quando via passar lá em baixo na rua as operárias e os operários a caminho de mais um dia suado, imensa mole de ganga escura e remendada, lugubremente encardida pela fuligem, que sabão algum do mundo conseguia expurgar...
quando passava, frente áquele enorme portão verde de correr, evocativo das grades de uma prisão, no seu ar ameaçador de boca escancarada, gulosa e lasciva, que convida a entrar para logo de seguida se fechar nas nossas costas com um sorriso malévolo de quem sabe que nos tem na mão, aprisionados para sempre, o que se tornou realidade para alguns, que lá deixaram dedos, mãos, braços, triturados, mastigados e devorados por aquela máquina gigante e antropófaga, antropofagia do ser incauto...
quando olhava infantilmente, contudo sobranceiro e altivo, do terraço do 43 para as coberturas das secções, por baixo das quais, sabia, escorria o sangue e o suor dos labutadores à míngua da sobrevivência pedinchada, numa época em que a única aspiração do povo era o ar...
quando sentia e quase via aquele grosso rio de ferro em fogo líquido escorrer braseiro, denso e rubro, numa força medonha e milenar cristalizada na história dos homens, forjados, forjadores, de forjas forjadas, dialéctica metalúrgica companheira da outra...
quando encontrava numa vala medroseira as escórias displicentemente abandonadas, infraprodutos residuais vidrados, belas na translucidez esverdeada, mas inúteis e abandonadas ao esquecimento da sepultura sob os posteriores edifícios outeirianos e lombosianos e condomínios privados, assombrados por fantasmas vulcânicos evolados delas...
quando falava com alguém que lá tinha trabalhado e que tinha sempre histórias as mais fascinantes de-ser-operário-num-país-fascista para narrar, como aquela em que os patrões fecharam a fábrica durante vários dias com os operários lá dentro, numa inglória batalha da produção, para sustentar inúteis esforços de guerra, alimentando-se aqueles homens com a comida que as mulheres lhes levavam diariamente e passavam através das grades...
quanda lá entrei pela primeira vez, para um comício, um encontro, um almoço ou algo assim, no calor da refrega e do ardor revolucionários imediatos à acção capitã, em que nos chamávamos ches, lenines, karls, josefes, fideles, maos, mas também zés e marias...

... eu não imaginava que um dia, em 1981, eu ali entraria para, durante quase dois anos e meio, me forjar operário de metalomecânica!

quinta-feira, novembro 25, 2004

novos links


Olá visitante.

Chamo a atenção para os dois novos LINKS deste blog.
Estão aqui mesmo ao lado e chamam-se:
"Património Histórico e Cultural de Oeiras" e "Oeiras em fotografia".

O primeiro conduz a um grupo de discussão aberta sobre Património de Oeiras.
O segundo encaminha para uma página com algumas fotografias de motivos patrimoniais interessantes localizados em Oeiras.

Até breve.

quinta-feira, outubro 28, 2004

adeus choupo que foste vítima de mentecaptos

1.

Hoje o acordar foi triste.

Eram talvez umas 09:45 quando saí do quarto e entrei no escritório.
Olhei pela janela, em parte para ver como estava o tempo, ultimamente manhoso, mas também para deixar os meus olhos passearem-se pela copa do magnífico e imponente choupo, visível a uns 5 ou 6 metros da minha varanda.

Um pormenor de imediato captou a minha atenção: um preto empoleirado num ramo, de serrote em punho, serrava furiosamente algumas grossas ramadas à sua volta.
No entorpecimento matinal, ocorreu-me ingenuamente que a Câmara, receosa de potenciais acidentes, ou avisada da iminência de algum, tivesse decidido podar algumas ramadas de natureza mais instável.

Achei bem.
Há que zelar pela segurança de pessoas e bens.
Há que acautelar, antes, para não ter depois que 'reparar o irreparável'.

Sentei-me na cadeira e concentrei-me no ecrã do computador.
Havia muito trabalho para fazer.
Muitas ilustrações para desenhar.
Assim se passou talvez uma ou duas horas.
Concentrado, como é meu hábito, desligado de tudo o que me rodeava, não assisti, felizmente, ao crime hediondo e inqualificável que estava a ser perpetrado.

Fui para ele despertado pelo grito de horror de minha esposa, que entretanto entrara no escritório:
— Destruíram o nosso choupo!
Olhei para a janela e fiquei horrorizado, completamente estarrecido.
Da frondosa e imensa copa, refúgio de centenas de pardais e outra passarada, já nada existia.

Via-se apenas a ponta serrada, partida, triste e ferida do tronco, projectando-se deste os cepos selvaticamente rachados do que antes foram grossos ramos e compridas ramadas, que sustentavam como braços de gigante aquela copa imensa que murmurava no silêncio da noite, que dançava na brisa fresca, que tantas vezes me embalara em noites de insónia.

É indescritível, é inefável, o som do murmúrio daqueles milhares de folhinhas a roçagarem umas nas outras no silêncio lunar.
Não tenho palavras para descrever o profundo, sublime, sentimento de prazer provocado por essa sinfonia, que era o ciciar das folhas acompanhado pelo pipilar cúmplice da passarada.
Quantas vezes, à noite na cama, me deliciei a ouvir esse autêntico concerto de jazz consubstanciado no swing das vibrações do ar, que vindas do choupo me entravam pelo quarto dentro e se espraiavam por cima da cama como um suave véu de seda macia, que me adormecia na convicção da transcendência.


2.

Quando saí de casa para ir almoçar, tive oportunidade de falar com algumas pessoas, sendo que a primeira foi uma engenheira florestal da Câmara Municipal de Oeiras, assim se identificou, que tinha sido alertada por um munícipe e estava a procurar averiguar de quem partira a ideia daquela barbárie.
Pouco tempo passado, disse-me, sem o garantir, que a acção parecia ter partido da própria Câmara, por razão de um qualquer projecto de acesso pedonal com rampa para deficientes, a construir naquele mesmo local.

É de louvar a preocupação com a melhoria das acessibilidades, mas quem conhece o local não acredita de modo algum na impossibilidade de desenhar uma solução capaz de poupar a vida a tal árvore, cujas características a tornavam indubitavelmente Património Natural do Concelho.

Uma outra senhora com que falei referiu-me que morava ali há cerca de 30 anos e lembrava-se de sempre ter visto ali a árvore.
Um senhor disse-me da dificuldade de uma mãe ou avô, não recordo bem, que passava, explicar à criancinha com quem ia e que a questionara, o que estava a acontecer e porque razão aqueles homens estavam a fazer aquilo à árvore.
Mais duas ou três pessoas com quem também falei mostraram-se escandalizadas com o acontecido.
O léxico utilizado pelas pessoas contemplava, em regra: crime, barbaridade, selvajaria, hediondo, etc.
O sentimento geral dos munícipes pareceu-me de revolta e indignação.

Para dar uma ideia da dimensão da citada árvore refiro que moro num 2.º andar e a minha varanda ficava abaixo do meio da copa.
Tanto quanto recordo, e tenho ainda documentado com 2 fotografias, a árvore atingia no seu ponto mais alto quase o 5.º andar do meu prédio.
Refiro ainda que o ponto de implantação da árvore não era ao nível do prédio, mas mais abaixo, cerca de uns 2,5 m., pois daquele lado existe um pequeno talude.
Isto tudo somado dava ao choupo uma altura estimada de cerca de 15 a 20 m.


3.

Onde estava um choupo, que nos dava qualidade de vida, agora vamos ter ferro e cimento...

Onde estava um choupo cuja copa nos dava privacidade, agora temos as janelas dos vizinhos...

Onde estava um choupo que era uma barreira natural contra o vento agora vamos ter a ventania...

Onde estava um choupo que era um 'planeta' carregado de vida vegetal e animal, numa miríade de microorganismos e de pequenos seres vivos que nele tinham o seu habitat, o seu ecossistema, ou parte dele, e que com a árvore interagiam num processo vital de simbioses e cadeias alimentares multifacetadas e riquíssimas, agora vamos ter...


4.

Enquanto escrevo isto, sentado frente ao computador, no mesmo sítio de sempre, olho para a direita através da janela e sinto um aperto na garganta. Há algo que me estrangula e falta-me o ar!

sexta-feira, outubro 01, 2004

PATRIMÓNIO - curso livre em Oeiras


A Câmara Municipal de Oeiras organiza o curso livre:

PATRIMÓNIO(S), Do Global ao Local

onde - Auditório da Biblioteca Municipal de Oeiras, Urb. do Moinho das Antas.
quando - 7 de Outubro a 4 de Dezembro.

mais informações - CM Oeiras, DASC/DCT/Sector de Acção Cultural, Tel. 21 440 85 52/87, Fax. 21 440 48 33, e-mail: susana.pereira@cm-oeiras.pt

terça-feira, setembro 21, 2004

Ciclo Internacional de JAZZ


JAZZ em Oeiras aplaudo mesmo saber sem ver vou se.

22 a 25 de Setembro 2004.

No Auditório Municipal Eunice Muñoz.

- Século do Jazz.
- Trio Filipe Melo.
- Sud - Sylvain Luc Trio.
- Ivan Paduart Trio.

jazzétó :)

justificação


Quando criei este blog o meu objectivo inicial foi dispor de um lugar onde pudesse deixar registadas as minhas memórias de Oeiras.
E assim foi acontecendo durante algum tempo.

Entretanto, um acontecimento recente introduziu uma nova linha de orientação a este projecto.
Refiro-me à criação do Fórum OeirasReminiscente < http://br.groups.yahoo.com/group/OeirasReminiscente/ >.

Sendo que apenas disponho, por enquanto, deste blog para deixar informações e elementos diversos que complementem a actividade do Fórum, o propósito inicial sofre uma ligeira alteração.
Não pretendo abdicar do projecto original (memórias de Oeiras), mas sim incrementá-lo, utilizando o blog para as duas actividades: memórias e informações.

Desta forma, irão aparecendo textos com as minhas estórias, entremeados com informações as mais diversificadas.

sábado, setembro 11, 2004

Força Perpétua!


Quando pensamos em património, ocorrem-nos imagens de museus húmidos e fedorentos, habitados por almas penadas; de velhos edifícios, às vezes a cairem de podres; de ruínas de tempos antigos; de igrejas soturnas; de palácios solitários; de fortes cinzentões; de castelos tristonhos; de estações arqueológicas... em suma, de pedras, calhaus e coisas que tais.
Esquecemos sempre o PATRIMÓNIO HUMANO, as pessoas! O que seria daquele património feito de matéria inanimada se não existissem as pessoas?

Reside em Oeiras, tem 39 anos, chama-se Perpétua Vaza, é atleta paralímpica na modalidade de natação, e vai representar Portugal em Atenas, Grécia. Sim, essa Grécia com a qual temos umas contas a ajustar...
Vai representar Portugal, mas também Oeiras, pois é uma atleta cá do nosso burgo.
Pessoas assim também são Património. Colocam a nossa terra no mapa. Em muitos mapas. Por isso, merecem todo o nosso apoio e carinho.
Para a Perpétua, o nosso apoio na sua luta e os nossos votos de uma grande vitória. Vitória que já começou, no facto de lá estar presente.

FORÇA PERPÉTUA!

terça-feira, setembro 07, 2004

OeirasReminiscente - Património Histórico-cultural de Oeiras


Criei há pouco tempo um Forum — OeirasReminiscente — cujo objectivo se centra no Património Histórico-cultural de Oeiras.

Transcrevo a apresentação, que se encontra na página de abertura do Forum:
"Este lugar é um convite.
Um convite à troca de ideias, à reflexão, à divulgação de eventos, à partilha de conhecimentos e à entreajuda, com o objectivo de não deixar cair no esquecimento aquilo que os oeirenses construíram, no sonho de que durasse eternamente: o seu Património Histórico e Cultural.
A memória pode ser curta. Compete-nos contribuir para que se prolongue o mais possível, para que os nossos descendentes ou substitutos, os vindouros, tenham orgulho em herdar e viver nesta vila."

Trata-se de um Forum sem moderador, aberto à participação daqueles que se interessam por esta temática.
O funcionamento é muito simples: mailing list - qualquer membro participa enviando emails e todos recebem esses envios (mais pormenores podem ser conhecidos na página do Forum no endereço citado mais abaixo).
O Forum não tem quaisquer objectivos político-partidários nem pretende ser uma 'praça pública' para lançar ataques pessoais ou ideológicos, para 'lavar roupa suja' ou para 'peixeiradas'... Existem locais e meios próprios para isso.
Pretende, muito modestamente, ser apenas um espaço, isento q.b., de encontro de pessoas e ideias. Um espaço aberto à partilha de memórias, de estórias e de histórias, quiçá também de reflexão, de divulgação de eventos, enfim, um espaço para si, onde se sinta livre para fazer o que quiser e como bem entender.
O meu objectivo em criar este Forum foi proporcionar um espaço acessível e rápido, que seja um canal de comunicação entre todos aqueles que se interessam pelo Património Histórico e Cultural do Concelho de Oeiras ou que, não tendo nenhum interesse particular no assunto, disponham (e estejam dispostos) a contribuir com o seu saber e experiências para a defesa deste património.
Mesmo que não habite em Oeiras, talvez Você tenha passado por cá num qualquer dia, talvez tenha feito aqui a tropa ou namoriscado alguma catraia :) , talvez tenha uma história engraçada para contar, talvez tenha tirado uma fotografia, ... partilhe isso connosco!
Esperamos por si. Todos teremos a ganhar.

A página de abertura encontra-se em
http://br.groups.yahoo.com/group/OeirasReminiscente/

Para subscrever envie um email para
OeirasReminiscente-subscribe@yahoogrupos.com.br

sexta-feira, agosto 13, 2004

Luis da vacaria


Não tenho nenhuma imagem na memória, dele pessoa nova. Sê-lo-ia certamente naquele tempo.
Mas a memória é como um rio heraclítico a fluir intemporal. A água que vemos agora passar parece a mesma de há pouco. Mesmo que entretanto tenham decorrido mil anos. Além de que, quando se é crianças, uma pessoa de, digamos, 40 anos, é velha, um 'cota' como se diz hoje. É necessário que o tempo faça desmaiar as frágeis folhas da vida, na luxúria outonal duma dialéctica sazonal, na aparentemente triste continuidade, para um dia percebermos, porque chegámos nós a essa idade, que velhos são os trapos.
E, assim, recordo-o velho, olhinhos vivos e brilhantes, um pouco ossudo e alquebrado, mas de voz espessa e possante a gritar o seu pregão. Se não avisava a chegada com a voz do corpo avisava com a voz da buzina da carroça, o que vai dar no mesmo. Fonc, fonc. Sentado na chiante carroça, puxada por uma mula que já vira melhores dias, debruçado sobre as rédeas, chibata na mão, num troc-troc rítmico, percorria o bairro, perseguido pela miudagem saltitante, ou com uma guarda-de-honra de bicicletas, parando nas ruas e pracetas, onde as mães e as avós acorriam a comprar o leite, os iogurtes, o pão, os ovos, que todos os dias ele religiosamente fornecia. E que, aqui para nós, eram do melhor e que bem que sabiam! Aquele pãozinho fresquinho logo pela manhã, espessamente barrado com boa manteiga, a acompanhar o café com leite, era uma oferenda divina que abria o apetite para o dia todo! Abria o apetite para a Vida!
Chamavamos-lhe sr. Luís da vacaria. 'Luís' de seu nome próprio e 'da vacaria' por ser proprietário de uma dita que existia nas imediações do bairro, próximo da Estrada Militar, actual Estrada da Medrosa.
O velho edifício, atrás do qual se situava a vacaria, ainda se conserva no local, hoje desabitado e de portas e janelas entaipadas a tijolo, sorrindo placidamente dos rumores de assombração fantasmagórica, que faziam passar ao largo a criançada, ali na ampla curva próximo do cruzamento de aceso aos Lombos, fazendo companhia ao pequeno forte de S. Gonçalo que fica também mais ou menos por trás.
Mas é do sr. Luís que quero falar.
Tinha fama de mulherengo. Diziam as más-línguas que na zona não havia empregadita ou criadita que escapasse ao seu faro apurado e ao catrapiscar do seu olho maroto, apesar da aliança doirada que trazia no dedo. Fama... tinha. Agora, se alguma vez teve o proveito...
Também, as mesmas línguas viperinas diziam em surdina, estas coisas não se dizem em voz alta, que ele aguava o leite. É caso para perguntar: se tinham, assim, tanta certeza, porque é que lho continuavam a comprar?
Nisto das más-línguas, nunca se sabe se falam por conhecimento de causa, se por despeito ou dor de cotovelo. Quem sabe, talvez quisessem apenas rivalizar com a mula que puxava a carroça do sr. Luís?
Antes da proibição de venda directa de leite, ele transportava na carroça as vasilhas metálicas, que atestava com o leite que tirava das suas vacas, vasilhas das quais retirava a quantidade que o cliente pretendia. Mas a proibição levou-o a mudar e a ter que se abastecer na UCAL, a passar a vender o leite empacotado. Uma consequência desta mudança foi ter passado também a vender iogurtes, que comprava à mesma empresa.
Como na vacaria também tinha porcos, além das vacas que nomeavam o local, e das galinhas, e sei lá que mais, ele ia frequentemente, com a carroça puxada pela tal mula que já vira melhores dias, pela Estrada Militar afora até ao quartel do RAC, buscar a 'lavagem' para dar de comer aos ditos. Para quem não sabe o que tal coisa é: a 'lavagem' é o resíduo que sobra das cozinhas e refeitórios. Cascas de batata, restos de legumes, restos de fruta, restos de comida, os porcos são omnívoros e não são esquisitos.
Esse percurso ao longo da estrada era uma oportunidade única para a miudagem andar de carroça. Pediam-lhe autorização, que ele sempre dava, e sentavam-se todos na parte de trás com as pernas de fora a baloiçar, numa gritaria eufórica que só adormecia depois do regresso ao bairro, quando era dada a ordem para saltar para o chão. Experiências campesinas numa vila com sonhos urbanos.
Eu só o costumava ver nessas ocasiões em que ele passava a pente fino o bairro, na sua venda ambulante. Não me recordo de alguma vez o ter visto noutro lugar que não fosse o acento da carroça.
Vi-o, sim, há poucos anos, abandonada toda a actividade por força da concorrência inumana dos supermercados, em particular do Pingo Doce nas Galerias Alto da Barra (que nos habituámos a referir como as 'Galdérias', excuso-me de explicar porquê...). Encontrei-o no Centro de Dia dos idosos da Medrosa. Aí passou os seus últimos anos na companhia de amigos, a maioria deles seus antigos clientes, no carinho e ternura lenta das memórias que não esquecem.

Da carroça e da mula, nem vestígios.

sábado, julho 24, 2004

a Torre


A Torre não é uma praia, é uma paixão.
Daquelas paixões para a vida toda, que se colam à pele como o cheiro agridoce de mil langonhas do corpo duma puta, que se entranha nos poros, que entra na corrente sanguínea, que é levada ao cérebro pelo bater do coração, e que preenche todos os interstícios do ser, indelevelmente.
Tinha uma qualidade ímpar. Era à medida do meu corpo e do meu espírito. Tinha uma geometria variável, que dependia do meu humor.
Às vezes era imensa como um deserto, extensa e infinita. Quase não descobria nela vivalma, excepto um ou outro camelo suburbano em busca do oásis cuja localização só eu conhecia. Outras vezes, minúscula e opressiva como uma esquadra de polícia de bairro. O ar parecia rarear e paredes invisíveis avançar poderosamente sem que as pudesse evitar de me confinarem ao nada que era eu.
Por ser uma enseada abrigada, era calma e segura como uma piscina. Uma piscina com ondas e marés, mas uma piscina, mesmo assim. As correntes, perigosas, passavam ao largo, para lá do bico do forte. E de qualquer das formas nós sabíamos que em caso de arrastamento bastava não lutar contra a corrente e deixar ir. O destino era a praia de Carcavelos. Quantas vezes corremos até esta para ir buscar alguém que tinha sido arrastado, por exemplo num colchão de praia, e que, como previsto, tinha contornado o forte e 'aportado' no extenso areal de Carcavelos. Era matemático.
O incontornável banheiro, sempre descalço, de t-shirt branca e calções azuis, que geria a concessão era o sr. António. Tinhamos simpatia por ele.
Só não gostávamos era dos binóculos gigantescos que usava, não só para a prevenção de acidentes com banhistas, mas também para vigiar o comportamento ético e moral na praia 'dele', como mandavam os bons-costumes...
Se algum casal de namorados se afastava para o fundo da praia ou para junto da muralha do forte, e se deitava na areia e aproveitava a distância, convencido duma privacidade inexistente, para um namorico um pouco mais fogoso, lá surgia ao pé deles, como um raio súbito, o banheiro a avisá-los que ali não podiam fazer aquelas poucas-vergonhas qu'ele bem os tinha visto pelos binóculos a beijarem-se a fazerem porcarias e se não param corro-vos da praia e nunca entram cá mais!
Além da merda dos binóculos, o sr. António tinha também um megafone com o qual, do muro dos balneários, lançava avisos aos banhistas ou para toda a praia informando que alguma criança tinha sido encontrada. O que nós gozavamos quando ouviamos ressoar pelo ar a sua voz megafonizada: "Achou-se uma criança perdida..." Na nossa lógica achavamos que se a criança tinha sido 'achada', então não estava 'perdida'! E numa praia daquela dimensão, perder uma criança era obra de monta.
A última vez que o vi, na Figueirinha, há 2 ou 3 anos, lia-se-lhe nos olhos e no rosto de rugas calcinadas pelos anos salobros a saudade do mar e da praia, impossíveis devido a uma perna amputada.
A Torre era, sobretudo, a nossa praia.
Conhecia-a como a palma da minha mão. Talvez até melhor.
Ali fiz os meus primeiros amigos de Oeiras. Todos os Verões alugávamos uma barraca, com direito a 2 banquinhos de madeira. Provavelmente os primeiros rapazes que conheci ali foram o Toni, o Mané e o Carlitos. Presumo isto pela simples razão de eles serem filhos de faroleiros do forte de S. Julião da Barra e morarem ali mesmo ao pé, nas casas dos faroleiros à entrada da praia. Naturalmente que eles passavam o dia todo na praia.
Depois seguiram-se todos os outros. Na maioria rapaziada que morava nos bairros velho e novo. Rapidamente conheci muita gente.
Tinhamos um grupo imenso de moços e moças. Brincávamos; nadávamos; pedíamos o côco emprestado ao Rui pescador para remarmos ou darmos mergulhos fora-de-pé; fazíamos concursos de mergulho a ver quem conseguia mergulhar na menor altura de água possível; entrávamos todos para a água, despiamos os calções e saíamos da água com eles trocados entre nós, o que era motivo de gargalhadas das nossas mães e pais; fazíamos corridas uns contra os outros a ver quem chegava primeiro ao Motel (não havia passeio-marítimo, porto de abrigo ou piscina oceânica; corríamos de pés nús sobre as rochas aguçadas e não era raro alguém acabar com um pé escortanhado; o regresso era feito pela marginal, para aliviar os 'presuntinhos'); jogávamos à 'verdade ou consequência' à sombra dum toldo, foi assim que uma vez tive que dar um beijo no nariz da Paula 'Pencas'...; quando veraneávamos por ali, abandonávamos as toalhas sem medo de ficar sem elas; comíamos umas enormes e magníficas Bolas-de-Berlim, vendidas numa barraquinha ao pé das escadas ou compradas à vendedora ambulante que palmilhava a praia agarrada à sua caixa de madeira; comíamos gelados comprados ao vendedor ambulante que gritava "é n'anilha ó chocolate", ou aqueles saborosos semi-frios que se vendiam no restaurante da praia; levávamos sandes para a praia para não perdermos um segundo que fosse por ter de ir a casa almoçar; dávamos beijinhos às escondidas, apalpões nem pensar; espojavamo-nos ao sol como lagartos, a ver quem conseguia o bronzeado mais escuro (era uma questão de honra, vá-se lá saber porquê); à sombra da barraca, ouviamos música num gira-discos portátil a pilhas que tocava os nossos discos preferidos de 45 rotações, que invariavelmente provocavam nos nossos pais comentários do tipo 'isso é só barulho'; e etc.

Na Torre a vida não tinha limite nem fim. Na Torre a vida era um vôo infinito.

domingo, julho 11, 2004

Agar, a escrava

Foi a primeira vez que fui apalpado de alto a baixo por um homem. Primeira e última, é bom que se saiba.
Seriam talvez umas dez da noite. Lá fora estava escuro como breu pois os candeeiros da rua eram poucos e iluminavam mal. A própria luz no interior do snack Agar criava uma cortina que acentuava a escuridão exterior.
Estava pouca gente no café. Apenas homens, era uma hora imprópria para as senhoras irem ao café, e rapazes, eu era o único. A maioria da fauna presente morava ali no quarteirão ou no bairro velho. O bairro novo, ou estava a ser construído, ou ainda não estava habitado. Fui habitá-lo cerca de um ano após a construção. Ora quando este episódio aconteceu, tenho a certeza, eu morava ainda no 43, lá ao lado do Agar.
O cliente que mais caminhara para ali chegar era o mestre Rocha, pescador, algarvio dos quatro costados que morava numa estranha casa de pedra na praia do Moinho, castigada pelas vagas das invernias tormentosas, ao lado do forte de São Julião da Barra. Era um homem ímpar. Lembro o fascínio que me provocaram as suas habilidosas mãos uma vez em que o vi na praia da Torre a construir um côco (pequeno botezinho de fundo chato, geralmente de pinho e tabopan). As suas mãos metamorfoseavam o pinho como se este fosse barro mole, como se uma antiga e velha cumplicidade ligasse carne e madeira.
Recordo que ele estava sentado ao balcão, de copo na mão, em amena cavaqueira com a rapaziada. Os restantes espalhavam-se em pé pela sala, uns aqui, outros ali ou acolá. Eu, tenho ideia que estava sentado. Todos bebiam e conversavam animadamente.
Contavam como lhes tinha corrido o dia de trabalho se referiam o chefe ou o patrão olhavam primeiro em redor e para a porta e depois uns para os outros e baixavam a voz até um nível quase inaudível, falavam do clima do tempo que chove ou não e se está frio como cornos, mais a merda do funeral que é no domingo daquele sacana que morreu com um ataque cardíaco e deixa viúva e três filhos por criar e reforma ou pensão agarra-te ao pau puta-que-pariu, falavam das vizinhas como aquela é uma boazuda ca-ganda-par-de-mamas-e-ganda-cu e até está separada do marido pelo que, e sempre havia alguém que jurava que já lá tinha ido e que ela tinha uma rata que parecia o túnel do rossio aldrabão foste mas foi o caralho, e olhar em redor aquele fedorento casado com aquela magricelas-tábua-de-engomar-que-nas-mamas-sai-ao-pai muita feia que anda sempre de fato cinzento ós quadrados e que tem pinta de bufo esse cabrão é da legião e um par de murros naquelas trombas ainda é pouco qu'o gajo é que lixou o do terceiro direito, e o filho do outro que tinha regressado a semana passada da guerra felizmente inteiro com os dois bracinhos e as duas perninhas e a piça e os tomates que é o mais importante e que contava a foda de arrebenta-peida que tinha dado no cu da preta na borda da picada em troca duma moeda de cinco coroas, e preciso de vinte continhos onde é que os vou arranjar conheço um gajo que tos empresta mas só através de mim e o gajo come-te trinta por cento e se não pagares no dia que ele diz manda os rapazes dele terem contigo e já sabes como é que é tens muita sorte se ficares vivo queres a massa vai ter comigo amanhã,
Eu, apenas ouvia, ria com as larachas, sempre havia alguém com uma piada nova, e aprendia.
Os três irmãos donos do snack-bar, creio que um era o Miranda e o outro Luís, do terceiro não me lembro o nome, Silva talvez, revesavam-se à vez no serviço. Mas muitas vezes estavam lá todos os três, sobretudo à noite.
Lembrei-me agora, o pai deles era carpinteiro e tinha um jeito fantástico para a profissão. Pelo menos a julgar por uma estante que nos fez e que durou imensos anos (ainda existe; após muitas vicissitudes que incluem ter sido cortada na horizontal e pintada de branco cá pelo je, mantém-se orgulhosa no sotão da casa dos meus pais).
Subitamente, um 'creme-nívea' pára bruscamente à porta e dele saem vários polícias que entram intempestivamente pelo estabelecimento adentro. Uma voz poderosa e autoritária impõe o silêncio. Desnecessariamente, pois perante aquele folclore fascizóide já há muito todos haviam emudecido (eu fui o primeiro, até porque estava calado). A memória é difusa mas tenho ideia que havia também alguns agentes à civil, talvez 'judite' ou 'pevide'. O último polícia a entrar volta-se e fecha a porta atrás de si. Ninguém entra nem sai. A mesma voz ordena que todos tirem para fora os BIs, se voltem para as paredes, mãos no ar apoiadas, braços e pernas afastados, e bico calado pouco barulho aí ao fundo.
E começa a sessão de apalpanço. Os agentes acocoram atrás de nós e de baixo para cima vai de apalpar. Tornozelos, pernas, coxas, por dentro e por fora, tronco, sovacos, braços. Temo que o polícia me descubra no bolso o maço de tabaco e a caixa de fósforos e me denuncie perante o meu pai, o qual ainda ignora que estou a resvalar para uma vida de 'droga'. Ocorre-me: tanto paneleiro por aí que adorava substituir-me nesta hora!
Enfim, terminada a apalpação, a polícia faz o balanço. Não encontraram nada. Nem armas de fogo ilegais, nem panfletos comunistas anti-patrióticos e subversivos, nem coisa nenhuma. Excepção feita para a navalha do mestre Rocha. Uma arma perigosíssima e subversíva, de acordo com eles! Os agentes ensurdecem perante as vozes que explicam que o homem é pescador e que a navalha é uma ferramenta de trabalho, para consertar redes, cortar fio de pesca, amanhar peixe... 'Dura lex sed lex', a lâmina tem mais de dez centímetros, medidos na palma da manápula do agente, e se o homem é pobre e não tem dinheiro para comprar outra, isso não é problema deles. A navalha desliza para o bolso dum agente.
Fica-me a impressão dela ter apenas um carácter justificativo e argumentativo de 'missão cumprida com êxito'... Fica-me uma sensação a que os brasileiros tão inspiradamente chamam sacanagem!
Saem todos após um delicado e educado, anacrónico, como mandam as neps, 'boa noite meus senhores'. Um boa noite que soa a portem bem senão levam um tautau.

Acabou a rusga e ninguém foi preso. A verdade verdadinha é que estas merdas eram só para chatear...

ai Portugal

Que relação poderá existir entre Oeiras e a Parede, sita que está esta no Concelho de Cascais?
Que a Parede foi em tempos um pequeno lugar atravessado pela estrada Lisboa-Cascais, já o sabemos. Que essa estrada passava por Oeiras, também o sabemos. Que, por estrada, seria difícil, senão impossível, ir de Oeiras a Cascais sem passar na Parede, parece-me uma dedução simples e quasi óbvia. Isto é uma relação, mas não parece muito relevante, assim como também não o parece ser o facto de tanto Oeiras como a Parede terem sido praias-de-banhos com alguma importância nos sécs. XIX-XX. Afinal, toda a Linha, de Algés a Cascais, o foi.
Rio, mar, praia, pesca, hótéis, esplanadas, casinos, são um fio condutor a ligar Algés a Cascais, a unir os dois concelhos, num movimento humano, social, histórico, que a Linha férrea consubstanciaria e a estrada Marginal consolidaria.
Quando vim de Alcácer do Sal em 1969/70 eu nada sabia sobre isto. Mal sabia o que eram concelhos e freguesias e que Oeiras e Cascais eram dois concelhos irmanados por uma longa história. Desconhecia ainda que as estações da CP da então chamada Linha do Estoril, correspondiam mais ou menos a antigos lugares e aldeias ribeirinhas dos citados concelhos.
A relação que para mim existia entre Oeiras e a Parede, era apenas o facto de que a minha vida estava repartida entre ambos os lugares. Em Oeiras, eu residia. Dormia e comia aqui. E depois do jantar via um pouco de televisão, que só transmitia umas poucas horas à noite. Na Parede, eu estudava, brincava, convivia, fazia amigos. Mas como, se o Liceu de Oeiras estava ali tão perto, apenas a cem metros da minha casa?
A explicação é simples e prende-se com o sistema de ensino. Em Alcácer, eu frequentara um colégio particular. Não existia ainda escola secundária na vila, como hoje acontece, e era o Colégio Dr. José Gentil que assegurava o ensino liceal, até ao 5º ano. Os exames, íamos fazê-los ao Liceu de Setúbal, o que era uma aventura. Ora quando vim, eu tinha acabado o 3º ano com aproveitamento e tinha passado para o 4º ano. A minha matrícula no Liceu de Oeiras, ou em qualquer outro, não era permitida. O sistema só permitia o trânsito do particular para o público em anos de início de ciclo, ou seja, 1º ano, 3º ano e 6º ano. Eu podia matricular-me, mas tinha que o fazer no 3º ano, o que implicava atrasar um ano os estudos (o que acabou por acontecer na mesma, mais tarde, mas isso é outra estória). Para me matricular no 4º ano só existia uma possibilidade, fazê-lo num colégio particular.
Neste plano a Linha não oferecia muitas alternativas. Alternativas que não fossem muito onerosas, claro. Que me recorde existiam: Os Salesianos, colégio de religiosos, no Estoril; o Portugal, colégio exclusivamente masculino, na Parede; os Maristas, também de religiosos, em Carcavelos; o St. Julian's, chamado 'dos ingleses', também em Carcavelos; o Bafureira, apenas feminino, na Parede; provavelmente existiam mais alguns, mas tão dispendiosos ou com acesso apenas mediante 'cunha', que nem me lembro deles.
A escolha recaiu sobre o Portugal. Era muito acessível, mesmo ao pé da estação, e eu tinha também estação à porta de casa, bastava-me o passe de estudante Oeiras-Cascais
A propósito, uma curiosidade: ainda tenho o passe de estudante Oeiras-Cascais com o último bilhete mensal, 2.ª classe, que comprei. Em Junho de 1973 o bilhete custava 47$50, na moeda actual 0.24€ ! Hoje parece uma ninharia mas na altura era muito dinheiro.
O Colégio Portugal, dizia eu, não era dos mais caros, eu conseguia vir almoçar a casa, enfim, lá me matricularam no Portugal. Oeiras e a Parede 'linkavam-se' por meu intermédio, diríamos em gíria Internet.
A maior parte do dia passava-o na Parede. Por isso tanto tempo demorei até ter amigos em Oeiras. Durante o tempo de aulas, como já referi, só cá estava para dormir e comer. No resto do ano, férias incluidas, passava a maior parte do tempo metido em casa.
Quando puder hei-de falar do Colégio Portugal, que tinha uma característica que o tornava especial. Era uma das poucas alternativas ao ensino público e, por isso, muito procurado por aqueles que não podiam frequentar este. Nomeadamente alunos que tinham sido expulsos dos Liceus de Cascais e Oeiras, habitualmente devido a mau comportamento. Eram os 'meninos maus das famílias boas'... Conheci toda a sorte de 'bandidos'. Deixo isso para outra altura.
Foi esta vida dupla que me levou tanto tempo a assumir-me um filho de Oeiras. Dois acontecimentos concorreram para que tal acontecesse. O ter começado a frequentar a praia da Torre em 1971 e o meu ingresso no Liceu de Oeiras em 1973. A partir daqui comecei a ter imensos amigos e amigas em Oeiras e comecei a frequentar a 'minha' terra com grande intensidade.

Oeiras nascia para mim. Eu retribuia-lhe.

sábado, julho 03, 2004

os mortos

Ao jeito de intermezzo.
Ao longo destes 35 anos muitos são aqueles que nunca lerão as minhas memórias de Oeiras. Todos fazem parte delas, de uma forma ou de outra, por boas ou por más razões, ou por razões assim-assim. Todos pertencem a essa memória remota ou próxima. Vários conheci como amigos do meu irmão. Pertenciam à geração com menos meia dúzia de anos que eu. Outros, menos, pertenciam à minha geração. Acompanhei muitos em festas de 'garagem', que aconteciam em sótãos porque viviamos em prédios. Também alguns acompanhei a pubs e a discotecas, ou em mergulhos 'tudo nu' à meia-noite na praia da Torre.
Da maioria deles eu nem sabia o nome. E nisso era correspondido. Para eles eu era o 'irmão do Júlio', o que era mais que suficiente para me identificarem. É tão bom não necessitar de B.I.!
Todos eles estiveram aqui, ali ou acolá, num qualquer lugar, neste, naquele ou num qualquer dia outro. Todos riram, todos ficaram sérios, todos choraram, todos morreram. Fosse por acidente, suicídio ou doença, álcool ou droga, ou a explosiva mistura de tudo isso, a temível gadanha abateu-se sobre eles e cerceou-lhes o fio da vida. Uns mais cedo, ainda adolescentes, outros mais tarde, jovens adultos. Todos tinham o futuro à espera deles. Mas a única coisa que encontraram foi a frieza gelada do presente permanentemente feito passado, na iniludível transmutação em pó.
Para que saibais, quero deixar aqui registados alguns nomes que ainda lembro, deles e delas, sabendo que estou a esquecer vários outros (a ordem é meramente alfabética): Calita, Fufu, Guida, Ilídio, Quim, Litri, Marçal, Nuno, Cigano, Rafael, Rui, Teresa e Toninho.

Mors ultima ratio.

sábado, junho 19, 2004

o zé dos óculos

Era assim que nomeavamos a taberna que hoje é o restaurante Mira-Ponte. Era assim apelidada porque o dono se chamava José e usava óculos (esta aparentemente inútil explicação é para os menos familiarizados com a alkunya-onomastikon-genesis in taberna). Na verdade acho que nunca soube o nome dele. Tratava-o, como toda a gente, por 'Sô Zé'. José, acho que era de certeza. Ah, e tinha um táxi por conta dele.
Lembro bem o ambiente. O intenso, quase nauseante, cheiro a vinho, a que o juramento a pés-juntos negava o martelar aquoso, e o odor a madeira velha, húmida, a lembrar vagina de peixeira idosa. Odor que me evocava imagens dum cais lisboeta à beira-rio, de madeira escura e pútrida, noctívago sem noite, à espera do tempo. Os líquidos círculos púrpura sobre o balcão, mesclando-se uns nos outros, fundindo-se em movimentos surdos, como manchas de tinta numa tela de pop-art enófila, eram sinais de uma semiótica condensada na tradição masculina. O vinho corria a rodos, encopado em copos de três, tragado avidamente numa escatologia firmada, encerrada, com estalos da língua, e um 'oh Zé, dá aí mais um qué pró caminho'. O som estrebuchado e o cheiro de um ocasional traque, ressoava por vezes e odorava o éter, provisoriamente, numa alegoria demiúrgica da criação. As minis, os tremoços, as azeitonas e as alcagoitas (amendoins), os queijinhos secos, as carcaças, as sandes de presunto, o habitual impunha-se para não destoar. Como o espaço era exíguo, os homens ficavam de pé, arrimados ao balcão como andorinhas poisadas num fio de telefone. E alguns eram-no. Andorinhas de vôo planado em busca do alento para a migração do dia seguinte que sempre se seguia, de volta ao mesmo poiso. Estranhas andorinhas, de migração tão curta.
Lembro também o edifício. A parte que hoje é curva e acompanha o passeio, na época era aberta e ao ar livre, com um pequeno muro em pedra e era calcetada, e aí existiam duas ou três mesas metálicas verdes com cadeiras também metálicas. Claro que em cima do empedrado aquilo baloiçava por todo o lado. No Verão à tardinha, era um óptimo sítio para estar, até porque não existia o movimento automóvel que existe hoje. Era sossegado. A entrada propriamente dita era feita por duas portas situadas na parede vertical de que ainda existe a empena, visível no edifício e nos vestígios residuais duma espessa coluna no interior. O espaço era estreito, a toda a largura do edifício actual, mas com paredes interiores que depois foram demolidas e lhe deram a amplitude actual. O balcão tinha mais ou menos ao meio uma portinhola e por aí se seguia, por um comprido corredor, para as salas interiores e para a cozinha. Era nessas salas que eram servidas as refeições. Tanto quanto recordo havia uma sala do lado esquerdo, seguida da cozinha, e uma sala mais comprida do lado direito, equivalente ao comprimento das anteriores. Esta última tinha mesas de madeira forradas a plástico florido e em torno, encostadas às paredes, algumas pipas de vinho. O sentar ali e respirar o delicioso aroma que vinha da cozinha era uma tentação para o espírito e para o corpo. O apetite crescia e preenchia todos os cantos do ser. A tentação era forte e tornava-se incontornável. Tinha que ser satisfeita.
A cozinheira era a mulher do Zé, e que cozinheira! Íamos lá muitas vezes, ao domingo, comer um belo dum frango assado acompanhado com batatas fritas e salada. Não havia em Oeiras e arredores nada que se lhe comparasse. Desconheço a origem dos frangos. Não sei se eram do campo, de aviário, do supermercado, da vizinha, da Lua, ou doutro lugar qualquer. Sei que eram bons. Excelentemente temperados e assados. No carvão. Tinham aquele sabor carbónico que só a brasa e o fumo conseguem transmitir aos alimentos. Eram uns belos repastos, sempre ansiosamente aguardados.
Há ainda daquele tempo um curioso pormenor que recordo pela invulgaridade que representava para mim, pois nunca tinha visto nada assim. Quando se entrava, na parede do lado esquerdo existia uma jukebox pendurada. Aparentemente nada de estranho. Não há nada de errado em existir uma máquina de discos numa taberna. O que me fascinava era o modelo. Não era uma das vulgares máquinas que apoiam no chão, mas uma máquina vertical, pendurada na parede. Eu interrogava-me se aquilo estaria bem fixo e não cairia. Que eu saiba, nunca caiu. Tanto quanto recordo, ouvir um disco custava cerca de 2$50. Dois escudos e cinquenta centavos. Eram as chamadas moedas de cinco coroas. Para a época não era uma quantia desprezável, pelo que raramente a máquina funcionava. Mesmo assim, de vez em quando alguém mais endinheirado ou perdulário, ou alguém já ébrio e que, por isso, já perdera o sentido ao dinheiro, punha uma moeda na máquina e ouvia-se soltar-se do interior desta, após um complicado e fascinante processo mecânico de trelac-prelac-troc, a voz do Gianni Morandi, da Marisol, do Gabriel Cardoso, do Tony de Matos, do António Calvário, do Tom Jones, do Elvis Presley, do que a censura, na sua sapiência inquestionável (do ponto de vista deles), complacentemente autorizava que o povo ouvisse.
Anos mais tarde, já snack-bar-restaurante, foi cenário de encontro de estudantes cheios de sonhos de liberdade e justiça social e palco de confluências amorosas e cumplicidades as mais variadas. Mas isto são outras estórias.

Enfim, às vezes tenho saudade do zé dos óculos.

quarta-feira, junho 09, 2004

praia

Antes de começarmos a frequentar a 'nossa' Torre e de descobrirmos aquela que viria a tornar-se a nossa praia de eleição, a praia que frequentávamos era o motel, ali para os lados do Areeiro.
O apelidado forte do Areeiro, ao qual chamo forte-marinheiro por estar sempre guardado por marinheiros da Armada. Gente de potente caixa de ar, a julgar pelos assobios que eu ouvia vindos lá do alto das muralhas e que presumia dirigidos às moças de biquini na praia. A menos que tivessem outro objectivo, cujo sentido me escapava. Talvez fossem um código secreto entre sentinelas, por exemplo a avisar da aproximação dum almirante. Mas se era isso, então o forte era visitado por centenas de almirantes todos os dias...
Na época ainda existia o Motel de Oeiras, o qual hoje é o Inatel. Era e é uma praia pequena mas acolhedora, com uma esplêndida esplanada onde se disfrutava uma magnífica vista sobre o escorreito Tejo. Digo 'disfrutava' porque hoje está emparedada por uma cortina envidrada sempre baça que me faz sentir glaucomático. Perdeu-se a visão límpida e clara que se tinha naquele tempo, sem qualquer nebulosa de permeio. A praia era algo rochosa mas com algumas línguas de areia suficientes para penetrar o mar e dar uns valentes semicúpios, ou para os mais afoitos se lançarem em fortes braçadas a nadar por ali fora como se fizessem tenções de chegar à Trafaria, ali quase em frente, os convencidos!
Recordo que eu ia poucas vezes à praia. A mãe ia com a avó, a Tensinha e o Julinho, mas muitas vezes eu preferia ficar em casa. Era a minha forma de estar só. Só, comigo e com os meus medos de 'estranho numa terra estranha'. Devo referir que nesta época eu ainda não tinha amigos em Oeiras. Estudava no Colégio Portugal, na Parede, pelo que mesmo os colegas eram gente de todo o lado, e nenhum era de Oeiras.
Enquanto elas iam para o Motel eu ficava em casa a brincar sozinho perdido nas minhas aventuras espaciais em galáxias distantes. Ainda hei-de explicar como uma vulgar cadeira se transforma num ápice num acento duma nave espacial ou como uma mesa e um cobertor se metamorfoseiam numa gruta repleta de pinturas rupestres e vestígios pré-históricos. Até fósseis de Triceratóps se encontram por lá!
Não ia, talvez porque não gostava da praia. Não era a minha praia. Era uma praia simpática. Eu é que não conhecia ninguém.
Aquela praia não tinha nada a ver com o que estava habituado: São Torpes; São Torpes antes do Complexo anti-biótico; São Torpes quilométrica a perder de vista; São Torpes dos amigos franceses veraneantes; São Torpes das brincadeiras nos pinhais; São Torpes de espreitar as mulheres a mijarem no pinhal; São Torpes dos aviões na placa da pista de aviação; São Torpes das moreias nos buracos das rochas; São Torpes do caminhar 100 metros, à proporção da idade, até perder-o-pé; São Torpes dos 10 meses de sonho à espera das férias e da maresia; São Torpes do canivete e das lapas cruas e saborosas; São Torpes do japonês comedor de peixe cru à porta da tenda; São Torpes do cacau com chá porque não havia leite; São Torpes do polvo frito contorcionista; São Torpes das moreias-cobra encanadas a secar ao sol; São Torpes do fado do embuçado em noite de sarau, 'fado numa noite de verão'; São Torpes de tendas, barracas e roulotes; São Torpes dos banhos com baldes de água fria tirados do poço; São Torpes de areia rumo ao infinito; São Torpes, San Tropez à portuguesa...
O Motel intimidava-me.
Ali não me sentia menino, miúdo ou rapaz, sentia moço. Ivitava falari pra ninguêm perceberi o mê sutaqui alantejanu. Fazia-me sentir só, demasiado só. E solidão por solidão, preferia buscar voluntariamente a minha própria. Mas a minha solidão não era vazia. Era preenchida de aventuras fantásticas em lugares onde ninguém podia andar. Lugares recônditos que apenas eu conhecia pois era minha a chave secreta que abria os portões por onde se penetrava nesses lugares.
Quando, após as habituais recomendações, a porta da escada se fechava era como se uma imensa e quente bolha me envolvesse. Uma bolha translúcida e maleável que me rodeava e isolava do real. Uma bolha caleidoscópica no interior da qual se dava a transmutação do espaço-tempo que me transformava no objecto do meu desejo: um astronauta a navegar solitário na nebulosa de Oríon, em busca do planeta perdido; um aventureiro de catana em punho a cercear lianas numa selva impenetrável, rodeado de terríveis feras; um marinheiro a desbravar um cabo tormentoso, num mar repleto de navios corsários; um espeleológo preso no interior de uma traiçoeira caverna labiríntica, em busca da almejada saída para a salvação; um cientista debruçado horas a fio sobre o microscópio, à procura do segredo do universo; enfim, uma fornalha de imaginação, um vulcão a expelir e a derramar sonhos.
O barulho da chave na fechadura era como o fino toque dum alfinete na superfície dum balão. A bolha explodia, o mundo esfumava-se, a aventura terminava.
— Então zézinho, o que é que fizeste?
— Ah, nada. — um homem com H não se gaba das suas vitórias nem do número de piratas que trespassou com a espada.

quinta-feira, junho 03, 2004

patamar-paisagem

Como eu gostava daquele terraço!
O prédio não tinha telhado. Hoje tem, telharam um telhado, estragaram tudo. Coisa típica da portugalidade bacoca, teimando em substituir o útil pelo inútil. Terminava então num amplo terraço com 3 lados, o quarto lado encostava à empena do prédio seguinte. No seu centro tinha as arrecadações, uma espécie de galinheiros em rede de capoeira, óptimos para a intempérie estragar o que lá se guardava (assim fiquei sem bicicleta.) Dele tinha uma vista soberba, direi mesmo esmagadora. E essa vista fascinava-me.
A frente do prédio estava e está voltada para a estação da CP de Oeiras, sem qualquer obstáculo pelo meio, pelo que lá de cima tinha uma perspectiva magnífica na direcção da alta de Oeiras. Via, por ali fora, a Quinta de Baixo, onde se destacava o imenso Palácio dos Marqueses; a vila, onde alteavam as torres sineiras da Matriz; o Augusto de Castro, com a sua regularidade pós-moderna; a Figueirinha, preâmbulo anunciador de dormitório; o cemitério, com as pontas aguçadas dos ciprestes, fálicos veículos de migração das almas em busca do Altíssimo; e por ali afora, literalmente 'até onde a vista alcança'. Dessa paisagem sobrou-me apenas uma paupérrima e cinzenta fotografia de má qualidade tirada com a minha velha Fujica.
Do lado esquerdo via a Fundição, domínio laboral, permanente cheiro a fuligem, fogo metálico, ferro líquido e escórias, onde alguns anos mais tarde ganharia a minha experiência operária. E por sobre a Fundição era possível divisar ao longe alguns prédios dum Carcavelos e duma Parede que cresciam como campo de cogumelos, míscaros de tijolo, cimento e vidro gerados para hábitos nocturnos e ausências diurnas, numa floresta desencantada caracterizada pela ausência de fadas ou capuchinhos vermelhos e pela abundância de lobos maus e animais do mesmo gabarito.
Para o lado direito via os 'montes hermínios' e o orgulhoso Liceu de Oeiras, via a faiscante estrada Marginal, alcatrão preto a transbordar aventuras sexuais em hotéis de Cascais, em 'bombas' dos anos sessenta conduzidas por dê-erres lisboetas acompanhados por secretárias morenas com bocas carnudas a cheirar a sémen, via o forte marinheiro do Areeiro e o imenso rio das tágides, com o imponente farol do Bugio no meio, guardião secular de memórias esquecidas.
Era uma vista espectacular! Sobretudo para uns olhitos habituados à planura seca e monocórdica dum Alentejo feito de substâncias imobilizadas no tempo. Aquele terraço era uma janela aberta para o infinito. Aqueles 6 pisos de altura imaginavam arranha-céus nova-iorquinos transplantados para o centro do mundo.
E os comboios? Comboios que vistos daquele lugar privilegiado pareciam o comboio de brincar que nunca tive. Como eram giros vistos de cima. Sobretudo o pára-em-todas, que ao chegar fazia a agulha para ir para a linha do meio. De onde só sairia para fazer o percurso inverso. Vai-e-vem, vai-e-volta, volta-e-vai. Vida de comboio. Como era cómico ver aquelas pequenas carruagens estremecerem e chiarem na mudança de linha.
E os barcos? Via-os ao longe descerem o rio na direcção da barra. Alguns passavam em sentido inverso. Outros, pequenas chatas, apenas ficavam ali a pairar à cata de pescado. Minúsculas mas persistentes, ali ficavam horas a fio sob o sol escaldante, a transpirarem cheiro a escamas e barbatanas salgadas, mergulhadas na maresia. Cargueiros, paquetes, fragatas, patrulhas, veleiros, traineiras. Devo ter visto de tudo. Talvez tenha visto passar algum navio com soldados para as colónias. Talvez tenha visto passar algum navio com presos para o Tarrafal. Talvez tenha visto passar o navio da esperança que nunca regressou ao lar.

Talvez...

domingo, maio 30, 2004

química

Aquele estojo de Química, magnífico perspectivado pelos meus púberes olhos castanhos, ainda era dos tempos de Alcácer. Salacia, a Urbs Imperatoria, a do sal, de onde eu viera algum tempo antes para ser filho adoptivo da mãe Oeiras.
Não recordo quem mo oferecera. A meu pedido certamente, pois se alguém era 'chato' quando queria algo, esse alguém era eu, e a família lá me aparava os golpes.
Era um estojo razoavelmente equipado, com frasquinhos etiquetados com vários produtos químicos, reagentes, tiras de prova, lamelas de vidro, tubos de ensaio, uma pinça para tubos, um suporte para os tubos e uma mais-que-porreira lamparina.
Uma lamparina de vidro, com uma tampa metálica de rosca com um pavio branco e uma tampa de cápsula, também metálica, para encaixar e tapar o gargalo.
Era na cozinha do n.º 43, onde habitava, que habitualmente eu fazia as experiências que vinham descritas no manual, além daquelas que eu próprio inventava, baseado nas aulas de Química do liceu, na esperança de compreender a natureza da matéria e descobrir a essência do Universo. A propósito, nunca descobri, mas continuo à procura...
Levava para lá o estojo, abria-o e dispunha o material sobre a bancada de pedra, com o rigor e a disciplina possíveis na irrequietude dos meus 12 anos. Era uma emoção fantástica. Sentia-me personagem dentro de uma qualquer página de um romance de Júlio Verne, explorador do desconhecido.
Naquele dia estava sozinho em casa. Creio que a mãe tinha saído para ir ao supermercado ou algo assim.
Tanto quanto lembro não estava ninguém comigo, ou se estava era certamente o escravo, o Julinho, que nos seus curtos 6 anos era o meu fiel discípulo e aprendiz de feiticeiro sempre disposto a cumprir as ordens do irmão-mais-velho-que-tudo-sabe.
Não sei como fiz aquilo. Aconteceu. Fui à casa de banho buscar o frasco do álcool para encher a lamparina que estava quase vazia. Ia fazer uma experiência que exigia aquecimento pelo fogo. E se não exigisse eu aquecia na mesma, só pelo gozo, talvez, de gerar combustão.
Enchi a lamparina, enrosquei-lhe a tampa e não me lembro do que aconteceu a seguir.
Lembro a imensa chama líquida azulada espalhada na bancada e escorrendo por ali abaixo direita ao chão. Lembro a aflição sentida, o pavor perante a situação descontrolada, o medo das consequências, a proibição anunciada, o castigo garantido...
Lembro que agi. Não sei é o que fiz. Sei que, em pouco tempo, a situação estava de novo controlada e o fogo extinto, e sem vestígios acusadores. A experiência programada, em busca do conhecimento, da sabedoria, podia continuar como previsto.
Podia ter acontecido uma tragédia naquele dia. Não aconteceu. E aprendi uma lição:

Como encher uma lamparina com álcool sem pegar fogo ao quarteirão...

sábado, maio 15, 2004

adeus

A única imagem que se mantém viva na minha memória daquele dia é a da partida.
Apanhámos cedo a camioneta para Setúbal, logo de manhã. A mãe, a avó, a Tense, o Júlio e eu. Recordo como se visse um filme aquela imagem, sentado próximo à janela, quando a camioneta deixou o largo frente ao rio e começou a subir a estrada. Recordo a dor e a angústia que senti ao olhar pela janela aquelas casas que, acreditava eu, nunca mais veria:

Os amigos e companheiros de aventuras fabulosas, que nunca mais voltaria a ver e com quem nunca mais brincaria aos cowboys ou jogaria ao berlinde, à carica ou à bola;
Os locais vividos, explorados, conhecidos, desconhecidos e cheios de cumplicidades, que eu abandonava para sempre como um vil traidor;
A 'culpa' que senti por voltar as costas a um lugar amado, que me correspondia com amor porque Deus o tinha criado para mim;
A ainda vívida imagem do pés-descalços-e-sapudos, que já era morto porque se afogara na água que lhe dava a vida, e que vendia camarões e caranguejos no largo que eu nunca mais veria;
O sabor amargo do lodo do rio, que eu perderia para sempre, onde nunca mais enterraria os pés descalços;
As cegonhas em que eu já nem reparava de tantas que eram, e duma das quais até tinha um ninho na chaminé ao pé de casa;
A ponte levadiça que já não levantava, porque os saveiros do sal de grandes mastros tinham partido para águas sem água para morrerem como gigantescos animais descarnados;
As anuais inundações, que justificavam a falta à escola e a pseudo-pescaria na varanda do quarto;
As laranjas aos milhões saindo pela porta do mercado, levadas pela corrente lodosa para paragens longínquas;
Os mosquitos do sapal em frente, que já não picavam porque estavam vacinados com o odor do meu sangue;
Os insultos aos trabalhadores sentados nas galeras do tomate, que respondiam atirando o que tinham à mão;
A venda, escuro e sombrio local, do cú-de-chumbo, que tinha de tudo como na farmácia;
O padre zorro que, diziam as más-línguas, roubava dinheiro da caixa das esmolas para ir beber copos de tinto na tasca do Bexiga;
Enfim, tudo o que eu amava.
Tudo isso se perdia. Tudo isso ficava para trás, como se a vida fosse uma estreita fita de papel esticada, na qual se dá uma tesourada.
A minha vida foi cerceada naquele instante.

Do resto da viagem nada recordo. Presumo apenas:
O fascínio da descoberta da paisagem maravilhosa da linha do Estoril vista do comboio. Mas esse fascínio terá sido esmagado pela angústia da perda. Naquela idade foi mais o que perdi que o que ganhei. Do ganho, só viria a tomar consciência ao longo do tempo, à medida que crescia.
E o que eu ganhei...

Mas isso são outras estórias para ir contando aos poucos.

sexta-feira, maio 14, 2004

porquê?

A P.d.I. não perdoa e as memórias estão cada vez mais longínquas.
Faço um esforço para recordar mas as imagens fundem-se e confundem-se num nevoeiro seco e áspero que as torna difusas e quasi irreais.
E isso dói.

Dói sempre que tento contar a alguém, ou a mim mesmo, como foi e como era.
E assim aqui está este ensaio de registar o que um dia desaparecerá para sempre na voragem de cronos como se nunca tivesse existido.
Talvez nunca tenha mesmo existido...

Nem sempre vivi em Oeiras.
Já lá vão uns bons 35 anos, desde que aqui cheguei carregando na sacola os meus 12 anos vividos na província. E como isto era diferente...!
É isto que quero contar. Sem nenhuma ordem especial.

À medida que me for lembrando, assumindo os enganos causados pela distância temporal e o desaparecimento das referências que mantinham viva a memória, irei colocando aqui as estórias, os locais, as pessoas, os sentimentos, as emoções, as paixões, as razões, a falta delas...

A memória nostálgica é o motor do eterno retorno...