sábado, julho 24, 2004

a Torre


A Torre não é uma praia, é uma paixão.
Daquelas paixões para a vida toda, que se colam à pele como o cheiro agridoce de mil langonhas do corpo duma puta, que se entranha nos poros, que entra na corrente sanguínea, que é levada ao cérebro pelo bater do coração, e que preenche todos os interstícios do ser, indelevelmente.
Tinha uma qualidade ímpar. Era à medida do meu corpo e do meu espírito. Tinha uma geometria variável, que dependia do meu humor.
Às vezes era imensa como um deserto, extensa e infinita. Quase não descobria nela vivalma, excepto um ou outro camelo suburbano em busca do oásis cuja localização só eu conhecia. Outras vezes, minúscula e opressiva como uma esquadra de polícia de bairro. O ar parecia rarear e paredes invisíveis avançar poderosamente sem que as pudesse evitar de me confinarem ao nada que era eu.
Por ser uma enseada abrigada, era calma e segura como uma piscina. Uma piscina com ondas e marés, mas uma piscina, mesmo assim. As correntes, perigosas, passavam ao largo, para lá do bico do forte. E de qualquer das formas nós sabíamos que em caso de arrastamento bastava não lutar contra a corrente e deixar ir. O destino era a praia de Carcavelos. Quantas vezes corremos até esta para ir buscar alguém que tinha sido arrastado, por exemplo num colchão de praia, e que, como previsto, tinha contornado o forte e 'aportado' no extenso areal de Carcavelos. Era matemático.
O incontornável banheiro, sempre descalço, de t-shirt branca e calções azuis, que geria a concessão era o sr. António. Tinhamos simpatia por ele.
Só não gostávamos era dos binóculos gigantescos que usava, não só para a prevenção de acidentes com banhistas, mas também para vigiar o comportamento ético e moral na praia 'dele', como mandavam os bons-costumes...
Se algum casal de namorados se afastava para o fundo da praia ou para junto da muralha do forte, e se deitava na areia e aproveitava a distância, convencido duma privacidade inexistente, para um namorico um pouco mais fogoso, lá surgia ao pé deles, como um raio súbito, o banheiro a avisá-los que ali não podiam fazer aquelas poucas-vergonhas qu'ele bem os tinha visto pelos binóculos a beijarem-se a fazerem porcarias e se não param corro-vos da praia e nunca entram cá mais!
Além da merda dos binóculos, o sr. António tinha também um megafone com o qual, do muro dos balneários, lançava avisos aos banhistas ou para toda a praia informando que alguma criança tinha sido encontrada. O que nós gozavamos quando ouviamos ressoar pelo ar a sua voz megafonizada: "Achou-se uma criança perdida..." Na nossa lógica achavamos que se a criança tinha sido 'achada', então não estava 'perdida'! E numa praia daquela dimensão, perder uma criança era obra de monta.
A última vez que o vi, na Figueirinha, há 2 ou 3 anos, lia-se-lhe nos olhos e no rosto de rugas calcinadas pelos anos salobros a saudade do mar e da praia, impossíveis devido a uma perna amputada.
A Torre era, sobretudo, a nossa praia.
Conhecia-a como a palma da minha mão. Talvez até melhor.
Ali fiz os meus primeiros amigos de Oeiras. Todos os Verões alugávamos uma barraca, com direito a 2 banquinhos de madeira. Provavelmente os primeiros rapazes que conheci ali foram o Toni, o Mané e o Carlitos. Presumo isto pela simples razão de eles serem filhos de faroleiros do forte de S. Julião da Barra e morarem ali mesmo ao pé, nas casas dos faroleiros à entrada da praia. Naturalmente que eles passavam o dia todo na praia.
Depois seguiram-se todos os outros. Na maioria rapaziada que morava nos bairros velho e novo. Rapidamente conheci muita gente.
Tinhamos um grupo imenso de moços e moças. Brincávamos; nadávamos; pedíamos o côco emprestado ao Rui pescador para remarmos ou darmos mergulhos fora-de-pé; fazíamos concursos de mergulho a ver quem conseguia mergulhar na menor altura de água possível; entrávamos todos para a água, despiamos os calções e saíamos da água com eles trocados entre nós, o que era motivo de gargalhadas das nossas mães e pais; fazíamos corridas uns contra os outros a ver quem chegava primeiro ao Motel (não havia passeio-marítimo, porto de abrigo ou piscina oceânica; corríamos de pés nús sobre as rochas aguçadas e não era raro alguém acabar com um pé escortanhado; o regresso era feito pela marginal, para aliviar os 'presuntinhos'); jogávamos à 'verdade ou consequência' à sombra dum toldo, foi assim que uma vez tive que dar um beijo no nariz da Paula 'Pencas'...; quando veraneávamos por ali, abandonávamos as toalhas sem medo de ficar sem elas; comíamos umas enormes e magníficas Bolas-de-Berlim, vendidas numa barraquinha ao pé das escadas ou compradas à vendedora ambulante que palmilhava a praia agarrada à sua caixa de madeira; comíamos gelados comprados ao vendedor ambulante que gritava "é n'anilha ó chocolate", ou aqueles saborosos semi-frios que se vendiam no restaurante da praia; levávamos sandes para a praia para não perdermos um segundo que fosse por ter de ir a casa almoçar; dávamos beijinhos às escondidas, apalpões nem pensar; espojavamo-nos ao sol como lagartos, a ver quem conseguia o bronzeado mais escuro (era uma questão de honra, vá-se lá saber porquê); à sombra da barraca, ouviamos música num gira-discos portátil a pilhas que tocava os nossos discos preferidos de 45 rotações, que invariavelmente provocavam nos nossos pais comentários do tipo 'isso é só barulho'; e etc.

Na Torre a vida não tinha limite nem fim. Na Torre a vida era um vôo infinito.

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