sábado, dezembro 04, 2004

forja de caracteres


Quando em 1970-72 eu miúdo acordava estremunhado com o uivo sinistro da sirene da Fundição, ali mesmo ao lado da minha casa, ali mesmo ao pé da minha cabeça, ali mesmo aninhado na minha almofada, a gritar doidamente que era chegada a hora...
quando espreitava à janela no meu ensonado voyeurismo matinal para, por entre a veladura das ramelas, ver a chuva cair lá fora, a anunciar um frio, arrepiante, deprimente e molhado dia de Inverno, ou para ver a límpida luz do sol prenunciadora dum belo dia de praia, prenhe de alegrias, risos e prazeres...
quando via passar lá em baixo na rua as operárias e os operários a caminho de mais um dia suado, imensa mole de ganga escura e remendada, lugubremente encardida pela fuligem, que sabão algum do mundo conseguia expurgar...
quando passava, frente áquele enorme portão verde de correr, evocativo das grades de uma prisão, no seu ar ameaçador de boca escancarada, gulosa e lasciva, que convida a entrar para logo de seguida se fechar nas nossas costas com um sorriso malévolo de quem sabe que nos tem na mão, aprisionados para sempre, o que se tornou realidade para alguns, que lá deixaram dedos, mãos, braços, triturados, mastigados e devorados por aquela máquina gigante e antropófaga, antropofagia do ser incauto...
quando olhava infantilmente, contudo sobranceiro e altivo, do terraço do 43 para as coberturas das secções, por baixo das quais, sabia, escorria o sangue e o suor dos labutadores à míngua da sobrevivência pedinchada, numa época em que a única aspiração do povo era o ar...
quando sentia e quase via aquele grosso rio de ferro em fogo líquido escorrer braseiro, denso e rubro, numa força medonha e milenar cristalizada na história dos homens, forjados, forjadores, de forjas forjadas, dialéctica metalúrgica companheira da outra...
quando encontrava numa vala medroseira as escórias displicentemente abandonadas, infraprodutos residuais vidrados, belas na translucidez esverdeada, mas inúteis e abandonadas ao esquecimento da sepultura sob os posteriores edifícios outeirianos e lombosianos e condomínios privados, assombrados por fantasmas vulcânicos evolados delas...
quando falava com alguém que lá tinha trabalhado e que tinha sempre histórias as mais fascinantes de-ser-operário-num-país-fascista para narrar, como aquela em que os patrões fecharam a fábrica durante vários dias com os operários lá dentro, numa inglória batalha da produção, para sustentar inúteis esforços de guerra, alimentando-se aqueles homens com a comida que as mulheres lhes levavam diariamente e passavam através das grades...
quanda lá entrei pela primeira vez, para um comício, um encontro, um almoço ou algo assim, no calor da refrega e do ardor revolucionários imediatos à acção capitã, em que nos chamávamos ches, lenines, karls, josefes, fideles, maos, mas também zés e marias...

... eu não imaginava que um dia, em 1981, eu ali entraria para, durante quase dois anos e meio, me forjar operário de metalomecânica!

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