Antes de começarmos a frequentar a 'nossa' Torre e de descobrirmos aquela que viria a tornar-se a nossa praia de eleição, a praia que frequentávamos era o motel, ali para os lados do Areeiro.
O apelidado forte do Areeiro, ao qual chamo forte-marinheiro por estar sempre guardado por marinheiros da Armada. Gente de potente caixa de ar, a julgar pelos assobios que eu ouvia vindos lá do alto das muralhas e que presumia dirigidos às moças de biquini na praia. A menos que tivessem outro objectivo, cujo sentido me escapava. Talvez fossem um código secreto entre sentinelas, por exemplo a avisar da aproximação dum almirante. Mas se era isso, então o forte era visitado por centenas de almirantes todos os dias...
Na época ainda existia o Motel de Oeiras, o qual hoje é o Inatel. Era e é uma praia pequena mas acolhedora, com uma esplêndida esplanada onde se disfrutava uma magnífica vista sobre o escorreito Tejo. Digo 'disfrutava' porque hoje está emparedada por uma cortina envidrada sempre baça que me faz sentir glaucomático. Perdeu-se a visão límpida e clara que se tinha naquele tempo, sem qualquer nebulosa de permeio. A praia era algo rochosa mas com algumas línguas de areia suficientes para penetrar o mar e dar uns valentes semicúpios, ou para os mais afoitos se lançarem em fortes braçadas a nadar por ali fora como se fizessem tenções de chegar à Trafaria, ali quase em frente, os convencidos!
Recordo que eu ia poucas vezes à praia. A mãe ia com a avó, a Tensinha e o Julinho, mas muitas vezes eu preferia ficar em casa. Era a minha forma de estar só. Só, comigo e com os meus medos de 'estranho numa terra estranha'. Devo referir que nesta época eu ainda não tinha amigos em Oeiras. Estudava no Colégio Portugal, na Parede, pelo que mesmo os colegas eram gente de todo o lado, e nenhum era de Oeiras.
Enquanto elas iam para o Motel eu ficava em casa a brincar sozinho perdido nas minhas aventuras espaciais em galáxias distantes. Ainda hei-de explicar como uma vulgar cadeira se transforma num ápice num acento duma nave espacial ou como uma mesa e um cobertor se metamorfoseiam numa gruta repleta de pinturas rupestres e vestígios pré-históricos. Até fósseis de Triceratóps se encontram por lá!
Não ia, talvez porque não gostava da praia. Não era a minha praia. Era uma praia simpática. Eu é que não conhecia ninguém.
Aquela praia não tinha nada a ver com o que estava habituado: São Torpes; São Torpes antes do Complexo anti-biótico; São Torpes quilométrica a perder de vista; São Torpes dos amigos franceses veraneantes; São Torpes das brincadeiras nos pinhais; São Torpes de espreitar as mulheres a mijarem no pinhal; São Torpes dos aviões na placa da pista de aviação; São Torpes das moreias nos buracos das rochas; São Torpes do caminhar 100 metros, à proporção da idade, até perder-o-pé; São Torpes dos 10 meses de sonho à espera das férias e da maresia; São Torpes do canivete e das lapas cruas e saborosas; São Torpes do japonês comedor de peixe cru à porta da tenda; São Torpes do cacau com chá porque não havia leite; São Torpes do polvo frito contorcionista; São Torpes das moreias-cobra encanadas a secar ao sol; São Torpes do fado do embuçado em noite de sarau, 'fado numa noite de verão'; São Torpes de tendas, barracas e roulotes; São Torpes dos banhos com baldes de água fria tirados do poço; São Torpes de areia rumo ao infinito; São Torpes, San Tropez à portuguesa...
O Motel intimidava-me.
Ali não me sentia menino, miúdo ou rapaz, sentia moço. Ivitava falari pra ninguêm perceberi o mê sutaqui alantejanu. Fazia-me sentir só, demasiado só. E solidão por solidão, preferia buscar voluntariamente a minha própria. Mas a minha solidão não era vazia. Era preenchida de aventuras fantásticas em lugares onde ninguém podia andar. Lugares recônditos que apenas eu conhecia pois era minha a chave secreta que abria os portões por onde se penetrava nesses lugares.
Quando, após as habituais recomendações, a porta da escada se fechava era como se uma imensa e quente bolha me envolvesse. Uma bolha translúcida e maleável que me rodeava e isolava do real. Uma bolha caleidoscópica no interior da qual se dava a transmutação do espaço-tempo que me transformava no objecto do meu desejo: um astronauta a navegar solitário na nebulosa de Oríon, em busca do planeta perdido; um aventureiro de catana em punho a cercear lianas numa selva impenetrável, rodeado de terríveis feras; um marinheiro a desbravar um cabo tormentoso, num mar repleto de navios corsários; um espeleológo preso no interior de uma traiçoeira caverna labiríntica, em busca da almejada saída para a salvação; um cientista debruçado horas a fio sobre o microscópio, à procura do segredo do universo; enfim, uma fornalha de imaginação, um vulcão a expelir e a derramar sonhos.
O barulho da chave na fechadura era como o fino toque dum alfinete na superfície dum balão. A bolha explodia, o mundo esfumava-se, a aventura terminava.
— Então zézinho, o que é que fizeste?
— Ah, nada. — um homem com H não se gaba das suas vitórias nem do número de piratas que trespassou com a espada.
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