sábado, maio 15, 2004

adeus

A única imagem que se mantém viva na minha memória daquele dia é a da partida.
Apanhámos cedo a camioneta para Setúbal, logo de manhã. A mãe, a avó, a Tense, o Júlio e eu. Recordo como se visse um filme aquela imagem, sentado próximo à janela, quando a camioneta deixou o largo frente ao rio e começou a subir a estrada. Recordo a dor e a angústia que senti ao olhar pela janela aquelas casas que, acreditava eu, nunca mais veria:

Os amigos e companheiros de aventuras fabulosas, que nunca mais voltaria a ver e com quem nunca mais brincaria aos cowboys ou jogaria ao berlinde, à carica ou à bola;
Os locais vividos, explorados, conhecidos, desconhecidos e cheios de cumplicidades, que eu abandonava para sempre como um vil traidor;
A 'culpa' que senti por voltar as costas a um lugar amado, que me correspondia com amor porque Deus o tinha criado para mim;
A ainda vívida imagem do pés-descalços-e-sapudos, que já era morto porque se afogara na água que lhe dava a vida, e que vendia camarões e caranguejos no largo que eu nunca mais veria;
O sabor amargo do lodo do rio, que eu perderia para sempre, onde nunca mais enterraria os pés descalços;
As cegonhas em que eu já nem reparava de tantas que eram, e duma das quais até tinha um ninho na chaminé ao pé de casa;
A ponte levadiça que já não levantava, porque os saveiros do sal de grandes mastros tinham partido para águas sem água para morrerem como gigantescos animais descarnados;
As anuais inundações, que justificavam a falta à escola e a pseudo-pescaria na varanda do quarto;
As laranjas aos milhões saindo pela porta do mercado, levadas pela corrente lodosa para paragens longínquas;
Os mosquitos do sapal em frente, que já não picavam porque estavam vacinados com o odor do meu sangue;
Os insultos aos trabalhadores sentados nas galeras do tomate, que respondiam atirando o que tinham à mão;
A venda, escuro e sombrio local, do cú-de-chumbo, que tinha de tudo como na farmácia;
O padre zorro que, diziam as más-línguas, roubava dinheiro da caixa das esmolas para ir beber copos de tinto na tasca do Bexiga;
Enfim, tudo o que eu amava.
Tudo isso se perdia. Tudo isso ficava para trás, como se a vida fosse uma estreita fita de papel esticada, na qual se dá uma tesourada.
A minha vida foi cerceada naquele instante.

Do resto da viagem nada recordo. Presumo apenas:
O fascínio da descoberta da paisagem maravilhosa da linha do Estoril vista do comboio. Mas esse fascínio terá sido esmagado pela angústia da perda. Naquela idade foi mais o que perdi que o que ganhei. Do ganho, só viria a tomar consciência ao longo do tempo, à medida que crescia.
E o que eu ganhei...

Mas isso são outras estórias para ir contando aos poucos.

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