Como eu gostava daquele terraço!
O prédio não tinha telhado. Hoje tem, telharam um telhado, estragaram tudo. Coisa típica da portugalidade bacoca, teimando em substituir o útil pelo inútil. Terminava então num amplo terraço com 3 lados, o quarto lado encostava à empena do prédio seguinte. No seu centro tinha as arrecadações, uma espécie de galinheiros em rede de capoeira, óptimos para a intempérie estragar o que lá se guardava (assim fiquei sem bicicleta.) Dele tinha uma vista soberba, direi mesmo esmagadora. E essa vista fascinava-me.
A frente do prédio estava e está voltada para a estação da CP de Oeiras, sem qualquer obstáculo pelo meio, pelo que lá de cima tinha uma perspectiva magnífica na direcção da alta de Oeiras. Via, por ali fora, a Quinta de Baixo, onde se destacava o imenso Palácio dos Marqueses; a vila, onde alteavam as torres sineiras da Matriz; o Augusto de Castro, com a sua regularidade pós-moderna; a Figueirinha, preâmbulo anunciador de dormitório; o cemitério, com as pontas aguçadas dos ciprestes, fálicos veículos de migração das almas em busca do Altíssimo; e por ali afora, literalmente 'até onde a vista alcança'. Dessa paisagem sobrou-me apenas uma paupérrima e cinzenta fotografia de má qualidade tirada com a minha velha Fujica.
Do lado esquerdo via a Fundição, domínio laboral, permanente cheiro a fuligem, fogo metálico, ferro líquido e escórias, onde alguns anos mais tarde ganharia a minha experiência operária. E por sobre a Fundição era possível divisar ao longe alguns prédios dum Carcavelos e duma Parede que cresciam como campo de cogumelos, míscaros de tijolo, cimento e vidro gerados para hábitos nocturnos e ausências diurnas, numa floresta desencantada caracterizada pela ausência de fadas ou capuchinhos vermelhos e pela abundância de lobos maus e animais do mesmo gabarito.
Para o lado direito via os 'montes hermínios' e o orgulhoso Liceu de Oeiras, via a faiscante estrada Marginal, alcatrão preto a transbordar aventuras sexuais em hotéis de Cascais, em 'bombas' dos anos sessenta conduzidas por dê-erres lisboetas acompanhados por secretárias morenas com bocas carnudas a cheirar a sémen, via o forte marinheiro do Areeiro e o imenso rio das tágides, com o imponente farol do Bugio no meio, guardião secular de memórias esquecidas.
Era uma vista espectacular! Sobretudo para uns olhitos habituados à planura seca e monocórdica dum Alentejo feito de substâncias imobilizadas no tempo. Aquele terraço era uma janela aberta para o infinito. Aqueles 6 pisos de altura imaginavam arranha-céus nova-iorquinos transplantados para o centro do mundo.
E os comboios? Comboios que vistos daquele lugar privilegiado pareciam o comboio de brincar que nunca tive. Como eram giros vistos de cima. Sobretudo o pára-em-todas, que ao chegar fazia a agulha para ir para a linha do meio. De onde só sairia para fazer o percurso inverso. Vai-e-vem, vai-e-volta, volta-e-vai. Vida de comboio. Como era cómico ver aquelas pequenas carruagens estremecerem e chiarem na mudança de linha.
E os barcos? Via-os ao longe descerem o rio na direcção da barra. Alguns passavam em sentido inverso. Outros, pequenas chatas, apenas ficavam ali a pairar à cata de pescado. Minúsculas mas persistentes, ali ficavam horas a fio sob o sol escaldante, a transpirarem cheiro a escamas e barbatanas salgadas, mergulhadas na maresia. Cargueiros, paquetes, fragatas, patrulhas, veleiros, traineiras. Devo ter visto de tudo. Talvez tenha visto passar algum navio com soldados para as colónias. Talvez tenha visto passar algum navio com presos para o Tarrafal. Talvez tenha visto passar o navio da esperança que nunca regressou ao lar.
Talvez...
1 comentário:
Bom, depois da Luísa, já pouco há a dizer. Andas a perder-te agarrado às revistinhas p'ra putos - que, a´liás, são bem giras.
Gostei muito deste "conto"(?).
O pessoal anda todo a dar p'rá literatura. Boa, boa.
Contra, Sempre
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