Aquele estojo de Química, magnífico perspectivado pelos meus púberes olhos castanhos, ainda era dos tempos de Alcácer. Salacia, a Urbs Imperatoria, a do sal, de onde eu viera algum tempo antes para ser filho adoptivo da mãe Oeiras.
Não recordo quem mo oferecera. A meu pedido certamente, pois se alguém era 'chato' quando queria algo, esse alguém era eu, e a família lá me aparava os golpes.
Era um estojo razoavelmente equipado, com frasquinhos etiquetados com vários produtos químicos, reagentes, tiras de prova, lamelas de vidro, tubos de ensaio, uma pinça para tubos, um suporte para os tubos e uma mais-que-porreira lamparina.
Uma lamparina de vidro, com uma tampa metálica de rosca com um pavio branco e uma tampa de cápsula, também metálica, para encaixar e tapar o gargalo.
Era na cozinha do n.º 43, onde habitava, que habitualmente eu fazia as experiências que vinham descritas no manual, além daquelas que eu próprio inventava, baseado nas aulas de Química do liceu, na esperança de compreender a natureza da matéria e descobrir a essência do Universo. A propósito, nunca descobri, mas continuo à procura...
Levava para lá o estojo, abria-o e dispunha o material sobre a bancada de pedra, com o rigor e a disciplina possíveis na irrequietude dos meus 12 anos. Era uma emoção fantástica. Sentia-me personagem dentro de uma qualquer página de um romance de Júlio Verne, explorador do desconhecido.
Naquele dia estava sozinho em casa. Creio que a mãe tinha saído para ir ao supermercado ou algo assim.
Tanto quanto lembro não estava ninguém comigo, ou se estava era certamente o escravo, o Julinho, que nos seus curtos 6 anos era o meu fiel discípulo e aprendiz de feiticeiro sempre disposto a cumprir as ordens do irmão-mais-velho-que-tudo-sabe.
Não sei como fiz aquilo. Aconteceu. Fui à casa de banho buscar o frasco do álcool para encher a lamparina que estava quase vazia. Ia fazer uma experiência que exigia aquecimento pelo fogo. E se não exigisse eu aquecia na mesma, só pelo gozo, talvez, de gerar combustão.
Enchi a lamparina, enrosquei-lhe a tampa e não me lembro do que aconteceu a seguir.
Lembro a imensa chama líquida azulada espalhada na bancada e escorrendo por ali abaixo direita ao chão. Lembro a aflição sentida, o pavor perante a situação descontrolada, o medo das consequências, a proibição anunciada, o castigo garantido...
Lembro que agi. Não sei é o que fiz. Sei que, em pouco tempo, a situação estava de novo controlada e o fogo extinto, e sem vestígios acusadores. A experiência programada, em busca do conhecimento, da sabedoria, podia continuar como previsto.
Podia ter acontecido uma tragédia naquele dia. Não aconteceu. E aprendi uma lição:
Como encher uma lamparina com álcool sem pegar fogo ao quarteirão...
2 comentários:
Estojo de Química???? Duranre os meus 3°, 4°, e 5° anos de liceu, nunca tive tal coisa. Para quê? Não tinhamos laboratório. O professor lecionava sobre experiências e nós tinhamos que ler sobre tais nos nossos livros, mas "hands-on" experiências? Forget about it!!!!!
A Química era apenas um exemplo do que era o sistema de ensino português na década 60 ( 60- 67) quando eu frequentei o Liceu Nacional de Oeiras. Um sistema rigoroso, puxado, mas baseado no marrar selvajem. Memorizar. memorizar, e mais memorizar.
Tal sistema certamente que separou os que queriam suceder qualquer fosse o custo daqueles que não tinham paciência para por na cabeça factos, muitos deles irrelevantes e que hoje em dia estão a nossa disposição com um clique dum mouse. Estou certo que muita rapaziada inteligente ficou pelo caminho, derrotada por um sistema que requeria conformidade, não fornecia oportunidades para criatividade, e punia comportamentos ou expressões que não seguiam os regras inflexíveis daqueles tempos.
Um abraço dos States
joão
Olá João,
Concordo com o que refere sobre o sistema de ensino. Também fui 'vítima' dele até aos meus 17 anos.
Agora quanto a laboratórios, quando andei no Liceu de Oeiras (entrei em 1973) o Liceu estava equipado com um excelente laboratório de Físico-Química e outro de Ciências Naturais.
Eu estava convencido que tais laboratórios datavam da construção e inauguração do Liceu (que tem 52 anos), e portanto já existiriam no tempo em que o João lá andou.
Seja como fôr, a verdade é que o mote naquele tempo era 'empinar', 'empinar', 'empinar' matéria, muita da qual nunca serviria para nada na vida.
E a consequência era essa mesma, quem não tinha pachorra desistia, mais cedo ou mais tarde.
Abraços de Oeiras para os States,
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